24.10.21

Holy Steps

  


Steps in the Garden.

I quickly throw the key of Eden down the privy.

Two bullets in the drum.

I kneel down.

I pray.

O Lord.

And wait.

The first I reserve for Thee:

Ego Te multiplicabo et faciam Te in multitudinem populorum.




21.10.21

Mormaço

 

– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para  ele comer. Você reparou?

 

– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.

 

– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.

 

– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O indicador?

 

– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga limpa o sangue na água salgada.

 

– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava no roteiro. Aconteceu.

 

– Não estava? Impossível.

 

– Não.

 

– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.

 

– E o Mario? Que disse?

 

– Nenhum comentário.

 

– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou mesmo.

 

– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça dela?

 

– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade. Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito obediente a ele.

 

– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.

 

– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.

 

– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.

 

– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar. Anonimato. Imagem-pensamento...

 

– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros, caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.

 

– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante. A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.

 

– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”

 

– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.

 

– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario, onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...

 

– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.

 

– Por aqui não haverá outro que o supere.

 

– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.

 

– Mundéu.

 

– Vamos fazer os pedidos agora?

 

– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é temperatura de primavera?

 

– Que horas são?

 

– Tarde. Uma hora.

 

– Menos uma. Menos uma.

 

 

 

14.10.21

De um momento para o outro


Poucas são as coisas minhas que não as comprei. Cabeça, tronco e membros. Por todo o resto paguei. Caro. Muito caro. Ataúde. Catacumba. A navalha. A navalha roubei da gaveta ministerial do sólido filho da puta do meu pae, aquela massa desconjuntada de artérias, negócios e reprovações. Em dias raros comprei barato. Quase de graça. Vento. Chicletes de troco. Revistas velhas. A sombra da mãe à janela imaginando a minha natureza e o que me levaria aos meus próprios limites. Aí a coisa já exigiu mais despesa. Eu teria de caprichar no ataúde para ela sofrer menos. Voltar a relacionar-me com amigos afastados pouco antes do último arremate para que as despedidas fossem concorridas e a mãe visse como foi amado o que por muito tempo guardara em suas mãos. Comprei perfumes caros para tornar o ambiente menos viciado em olhos inflamados e gânglios de desprezo. Uma bata discreta. Um cache-nez para o pescoço. No bilhete, recomendei horas ao sol de novecentos graus antes de descerem minha cápsula nos arredores da cidade. Há um certo frio em campos cultivados e espectadores. Prometi que voltaria se melhorasse. Daqui a um século, de um momento para o outro. Pena que não os veria jamais. Se pudesse escolher, procuraria um pardieiro bem mais distante de todos os seres que conheci cordialmente. Cerimônia concluída, passeio pela represa ali perto. Sem planos para o futuro. Me perco de vista. Agora sim, impenetrável corpo inteiro. Volátil. Arrebatado. Tudo grátis. E uma nuvem de poeira.