14.10.21

De um momento para o outro


Poucas são as coisas minhas que não as comprei. Cabeça, tronco e membros. Por todo o resto paguei. Caro. Muito caro. Ataúde. Catacumba. A navalha. A navalha roubei da gaveta ministerial do sólido filho da puta do meu pae, aquela massa desconjuntada de artérias, negócios e reprovações. Em dias raros comprei barato. Quase de graça. Vento. Chicletes de troco. Revistas velhas. A sombra da mãe à janela imaginando a minha natureza e o que me levaria aos meus próprios limites. Aí a coisa já exigiu mais despesa. Eu teria de caprichar no ataúde para ela sofrer menos. Voltar a relacionar-me com amigos afastados pouco antes do último arremate para que as despedidas fossem concorridas e a mãe visse como foi amado o que por muito tempo guardara em suas mãos. Comprei perfumes caros para tornar o ambiente menos viciado em olhos inflamados e gânglios de desprezo. Uma bata discreta. Um cache-nez para o pescoço. No bilhete, recomendei horas ao sol de novecentos graus antes de descerem minha cápsula nos arredores da cidade. Há um certo frio em campos cultivados e espectadores. Prometi que voltaria se melhorasse. Daqui a um século, de um momento para o outro. Pena que não os veria jamais. Se pudesse escolher, procuraria um pardieiro bem mais distante de todos os seres que conheci cordialmente. Cerimônia concluída, passeio pela represa ali perto. Sem planos para o futuro. Me perco de vista. Agora sim, impenetrável corpo inteiro. Volátil. Arrebatado. Tudo grátis. E uma nuvem de poeira.