21.10.21

Mormaço

 

– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para  ele comer. Você reparou?

 

– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.

 

– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.

 

– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O indicador?

 

– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga limpa o sangue na água salgada.

 

– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava no roteiro. Aconteceu.

 

– Não estava? Impossível.

 

– Não.

 

– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.

 

– E o Mario? Que disse?

 

– Nenhum comentário.

 

– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou mesmo.

 

– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça dela?

 

– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade. Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito obediente a ele.

 

– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.

 

– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.

 

– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.

 

– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar. Anonimato. Imagem-pensamento...

 

– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros, caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.

 

– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante. A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.

 

– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”

 

– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.

 

– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario, onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...

 

– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.

 

– Por aqui não haverá outro que o supere.

 

– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.

 

– Mundéu.

 

– Vamos fazer os pedidos agora?

 

– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é temperatura de primavera?

 

– Que horas são?

 

– Tarde. Uma hora.

 

– Menos uma. Menos uma.