– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para ele comer. Você reparou?
– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.
– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.
– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O
indicador?
– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga
limpa o sangue na água salgada.
– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava
no roteiro. Aconteceu.
– Não estava? Impossível.
– Não.
– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância
a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.
– E o Mario? Que disse?
– Nenhum comentário.
– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou
mesmo.
– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça
dela?
– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade.
Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito
obediente a ele.
– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena
com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.
– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao
infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.
– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente
me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em
nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.
– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar.
Anonimato. Imagem-pensamento...
– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas
repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros,
caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e
doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.
– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante.
A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.
– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”
– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.
– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario,
onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...
– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.
– Por aqui não haverá outro que o supere.
– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.
– Mundéu.
– Vamos fazer os pedidos agora?
– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é
temperatura de primavera?
– Que horas são?
– Tarde. Uma hora.
– Menos uma. Menos uma.