25.1.16

poetas eternos têm cheiro de formol






– Poetas eternos têm cheiro de formol.
– Passa uma isca.
– Minha mãe teve um infarto fulminante no aeroporto de Frankfurt.
– A minha também.
– Eu tinha nove anos.
– A minha também.
– …
– Que horas são?
– É cedo.
– Acho que o futuro é de água. Como esta aqui.
– Sabia que me lembro da primeira palmada e do grito, “É uma menina!”?
– Nããão.
– Verdade. Lembro até das veias azuis do leite.
– Poemas saindo pelo mamilo.
– Uma felicidade.
– Só lembro de um homem de pijama perto do berço. Levava uma pasta.
– Seu pai?
– O mundo sempre me dá medo.
– O mundo é a bola da casa. Alguém faz o approach, o pêndulo livre,
e ele rola na sua direção. Não há canaleta que segure. Cada alma vale 1 ponto.
– Olha o cardume ali virando atrás da rocha.
– Essas pedras parecem de borracha.
– Peixes cativos sabem ler. Leem as bolhas subindo pelo aquário.
– E poetas eternos têm cheiro de formol.
– Sim.





24.1.16

Stalker de Adélia Prado






sexta-feira: 20:22



ouvindo no carro Rêverie de Debussy, o Bussyk, meu compositor favorito depois de Satie. uma surpresa. ah, Tom Jobim, você fez igualzinho no piano o seu primeiro verso: "Olha, está chovendo na roseira..." 



21:51 segunda parada

well, parece que descobri a pólvora, hmm. Tom Jobim faz uma "citação" de Debussy. só eu não tinha percebido. a 120 por hora pelas estradas esburacadas de Minas, minha memória é névoa. estou no laptop puglado sobre a mesa encardida do bar Duas Cruzes. rumo a Divinópolis. depois de passar dias olhando os pombos se coçarem no peitoril de minha janela em JF, decidi ser stalker de adélia prado. o que fazer em Minas se não acredito em Deus? buscar adélia prado. assediar seus versos. lentas tomadas em sépia. dou um gole na cerveja. polícia militar rodoviária a 500 metros, leio na placa. dois buracos de bala. está escuro. o bar já vai fechar. penso nos versos que fiz esta semana e enviei para o Valter.


Verlaine era verde.
Às três da manhã sua boca verde
cochichava no ouvido de Rimbaud:
"Venez, chère grande âme,
on vous appelle,
on vous attend!"
Mas Rimbaud era daltônico
e se importava com outras coisas.
Perdeu-se n'África e nunca mais escreveu.

Às vezes a poesia dá um nojo.


eu não tenho nojo - angustura - dos versos de adélia. luzia, estou indo para Divinópolis, para a rua Ceará. acelerada, pneumática. se ela não me receber, vou me instalar numa carrocinha de cachorro-quente na frente de sua casa. será que a poeta tem balanços na varanda? as noites seriam mais curtas em divinópolis? antes que o dia amanheça estarei chegando em BH. dali para divinópolis é chão. esqueço das horas. ouço bois que não precisam da noite para mugir. minha boca tem gosto de prego. e do banco do carona vazio. o Duas Cruzes tem um jardim de gerânios secos no fundo. duas sepulturas. uma TV ligada na rede minas. minha orelha coça e descubro que é carrapato. a estiagem traz dessas coisas. estou seca. previsão de chuvas para o fim de semana. adélia não vai me deixar ao relento. ela deve ser educada. vai me receber com café e biscoitos. bolo de fubá. talvez me mostre a igreja da praça. um poema inédito. uma rua de terra. um quarto com crucifixo na parede. uma ampla cozinha onde se conversa da vida alheia enquanto se come à farta. isto é Minas. um silêncio na alma. meus pombos estão sozinhos no décimo quarto andar. eu só preciso agora pagar a conta e pisar no acelerador.


23:19

consulto o mapa pela décima vez. tenho de seguir por congonhas para chegar a divinópolis. quem foi o filho da puta que me falou de BH? sinto uns tremores só de pensar no fantasma de aleijadinho. dizem que ele assombra as estradas. estou parada num trevo. consigo a conexão com dificuldade. a bateria não vai suportar. não sei a que horas chegarei em divinópolis. só sei que ela estará lá. é mais perto do que eu imaginava. poucos carros passam por mim a esta hora. todos me ultrapassando nas curvas pelo meio da pista. muitas carretas. o que é pior. espero chegar viva para adélia. não faz diferença. luzia nem sabe que existo.



23: 58

outra parada obrigatória. acidente na estrada. duas ambulâncias. um corpo de bombeiros. uma multidão em volta. não quero olhar as ferragens. teclo no banco do carona. cochicham dois morreram. mulher de mão seca, não sei o que dizer aqui. gostaria de escrever torrencialmente. mas minha vizinha do coração disparado emudece. às vezes penso que adélia é uma miragem. vou chegar na hora do catecismo, luzia.



sábado 00:39

london motel. beira de estrada. papel de parede verde. ventilador de teto. apartamento simples, 35 reais. café da manhã. 40 watts. janelas sem cortinas. chuveiro elétrico. o melhor da região. pelo menos o mais visível. sem sabonete. bíblia na cabeceira. faltando a página 109. apago o cigarro. boa noite.




22.1.16

A Porca de Brandemburgo






Emil chega atrasado, senta na frente da estante, penteia o cabelo gorduroso em suaves ondas. Pega um dicionário em capa de neutro azul e posa para a foto. Ay, ay, ay, ay, ay, paloma. No Império do Eu, estou de uniforme riscadinho de cinza, rainha absoluta do que ganho de antemão. Não sou a única emissária do mundo, sou a Porca de Brandemburgo. Guardo meu rabo com AK-47. Dentro da garagem fechada. Dentro do carro fechado, motor ligado, rádio aceso. Ouço uma partida de futebol e percebo, com autoridade suprapensante, a existência do Outro. Um campo verde. O estádio cheio de botas desocupadas. Apupos. Gritos. A arma no banco de trás. Estou no meu sintoma. Emil perde meu tempo com sua má vontade. Carrego a máquina de novo, preciso despachar o material o mais rápido impossível. Emil olha minhas pernas. O editor olha minhas pernas. Vejo uma cozinha. A pia coberta de talheres de prata monogramados. As pernas cansadas de minha mãe servindo oficiais em Ravensbrück. Ay, ay, ay, ay, ay, cantaba. Ay, ay, ay, ay, ay, gemia. Quero fotografá-la. Emil, o Velho, cochicha com o editor. Nada dizem. É pose. A foto não fica boa. A Guarda de Ferro não está satisfeita de ser fotografada pela Porca de Brandemburgo. Uma porca premiada. Eu já li esse filho da puta e não li. Eu já vi esse nada e não vi. Pisco o olho para ser a vagabunda que todos esperam. A Lady Macbeth acorrentada. Mas o fuzil engatilhado me obriga a ser eu mesma o que tudo acontece. O espírito do velho estufa no peito. Clico outra vez. Um carro se aproxima a distância. Minha alma que regressa. Se parar nos fundos da casa, viro o braço e pego a Luger. Passa direto. O banco vazio dos meus pais manchado de sangue. "O mundo é grande demais para porquinhos preguiçosos, menina." Meu pai cortava a grama, mas era o vento. Eu sonhava com biscoitos e mariposas. Meu Citroën Traction Avant preto de 1911 cilindradas, 43 HP, 2 portas a ponto de explodir, ofereço ao velho uma carona até o VIe arrondissement, o máximo de milhagem que posso suportá-lo ao meu lado. O fedor de uísque e repolho contaminando o couro macio. Sozinho com a Porca de Brandemburgo, ele exibe um leve tremor nas mãos. Como um feto mexendo os dedinhos rosados manchados de nicotina. Meu sobretudo cobre a Kalashnikova saudosa de atividade. Prometi a ela um porvir. O cadáver do Mal. Olho para os lados, as ruas livres de soldados. Kalashnikova, minha irmã para todas as horas. Mudo de estação e ouvimos um discurso. Emil precisa de palavras e eu preciso que ele se distraia com palavras, com sua própria derrota. Estou à beira de um orgasmo violento enquanto controlo os pedais. Que vergonha, ele murmura dolorido, e fico apreensiva se descobriu o que se passa em meu corpo. Mas é só o discurso. Não consegue misturar dois planos. Os instintos já apagados no cinzeiro. O pensamento arde na minha pele, plenamente consciente da missão. O juiz apita, jogo encerrado. Os jogadores atravessam o pântano a caminho do túnel. Esgotados, descem escadas, vão para os chuveiros. Viro na última rua antes que ele pisque. Quero vê-lo se decompor na minha garagem enquanto mudo de estação. Ay, ay, ay, ay, ay, paloma.





14.1.16

E havia as tardes






Todos os pais dos meus amigos têm sido uma biblioteca em tudo.
Meu pai não lia um livro. Mas jornais.
Se era dia de pegar o trem suburbano,
não havia centro da cidade.
Num desses dias no subúrbio
ele para, entra no cartório e
registra o nascimento da filha
aos 7 anos naquela mesma cidade.
Me pergunto se sou eu, nascida
7 vezes antes mais ao sul daquele país.

E havia as tardes.

E a pesca dos peixes da tarde.
O mar já calmo, cansado.
Deitando suas águas no horizonte
e olhando para o teto até cair no sono.
Numa dessas distrações, roubavam-lhe os peixes.
Era meu pai com sua vara de bambus acopláveis.
Sem molinete. 
Vara e linha empinadas seccionando a paisagem,
isolando-nos do resto. Eu e ele dentro do triângulo.
Não lembro dos peixes.
Lembro das iscas moles perdidas no fundo.
Lembro do lixo que o mar devolveu ao anzol do meu pai.

À noite voltávamos para casa sem dizer uma palavra.

O retorno é um ângulo reto escuro e pavimentado.
Me oriento pelos hidrantes vermelhos, os marcos da infância.
Sempre há um degrau a mais.
No elevador as iscas se mexem.
Aperto 6.
As grades abrem os braços e correm pelos trilhos.
Estamos trancados dentro do dia acabado.
Meu pai conta os segundos.
É pelo tempo que todos sabem parar.






7.1.16

dois espressos





A parede e você me olham --
figura e fundo indistintos.

Um ponto de luz na íris
me diz coisas que já sei
sem precisar ouvir.

Colo os quatro lados do fim.
Penduro quando saimos.






4.1.16

Não é fácil ser poeta




Não é fácil ser poeta

já de manhãzinha

pentear-se à frente

para cobrir a careca


coser uns retalhos

arrancados a cânone

e dizer que foi 

                     o vento

                     um olhar

                     um som

                     uma imagem

                     uma combustão

                     o gim

Within

os fios de cabelo perdido

que integrarão minha próxima

coletânea







3.1.16

Entojo






Beijos fortes
abraços firmes
olhares lânguidos
promessas ao ouvido
mãos dadas
aqui e ali
dois ovos mexidos
duas perdizes

Às vezes entojo é a entrega total.
Outras vezes é nada.