Eu quero o pano de chão que estava aqui. Onde está o pano de chão que deixei aqui? Eu comprei dois e um estava bem aqui. É este um que eu quero. Você não precisa refletir muito para compreender que eu quero o pano de chão que deixei aqui. Se deixei aqui, ele devia estar aqui. Constantemente presente. Com sua razão de ser. Eu não quero o pano. Eu não quero o chão. Quero o pano de chão. Uma síntese indissolúvel. Não são palavras criadas por mim. São um objeto. Que está faltando. Isso significa uma espera. Eu espero o pano de chão que estava aqui num outro momento e neste exato não está mais. E quanto mais espero mais a minha mão pesa na caneta. A ausência é sentida e pesada. O mundo dos meus objetos não é mais o mesmo. Falta um ponto no mapa. Ou um traço. Falta um lago, uma ruazinha, uma cidade. E se falta, há um buraco. Alguém pode cair nele. Eu poderia dar pela falta de uma árvore, um poste. Um cacho de uva. Uma emoção antiga dita de uma maneira nova. Mas é do pano de chão o rosto na gravura. No primeiro momento de descuido esse rosto disfarçará a voz e não parecerá mais o que é. Isso é o mais longe que ele poderá ir. Quanto mais dou por sua falta, mais jogo o resto que me cerca fora. E por jogar o resto fora, ele se agiganta. Calcule por hectare. E ele só começou com uma frase. Eu quero o pano de chão que estava aqui foi onde tudo começou e agora não consigo alcançá-lo. A distância só faz aumentar, o que é um perigo. Se é um perigo, posso querer negar. Não, o pano de chão não estava aqui. Você tem certeza de que estava aqui? Tem certeza de que você tinha um pano de chão? Quem se importa com o teu pano de chão? De que serve? Mas eu não preciso me explicar com uma palavra, muito menos com três. Muito menos negar. Negar é fugir. Agora eu posso entender o que é uma emoção. Eu quero verdadeiramente o pano de chão que estava aqui. Arrumo minhas urgências na ordem que eu quero. Dentro do sol quente da manhã.
27.12.11
Eu quero o pano de chão que estava aqui
Eu quero o pano de chão que estava aqui. Onde está o pano de chão que deixei aqui? Eu comprei dois e um estava bem aqui. É este um que eu quero. Você não precisa refletir muito para compreender que eu quero o pano de chão que deixei aqui. Se deixei aqui, ele devia estar aqui. Constantemente presente. Com sua razão de ser. Eu não quero o pano. Eu não quero o chão. Quero o pano de chão. Uma síntese indissolúvel. Não são palavras criadas por mim. São um objeto. Que está faltando. Isso significa uma espera. Eu espero o pano de chão que estava aqui num outro momento e neste exato não está mais. E quanto mais espero mais a minha mão pesa na caneta. A ausência é sentida e pesada. O mundo dos meus objetos não é mais o mesmo. Falta um ponto no mapa. Ou um traço. Falta um lago, uma ruazinha, uma cidade. E se falta, há um buraco. Alguém pode cair nele. Eu poderia dar pela falta de uma árvore, um poste. Um cacho de uva. Uma emoção antiga dita de uma maneira nova. Mas é do pano de chão o rosto na gravura. No primeiro momento de descuido esse rosto disfarçará a voz e não parecerá mais o que é. Isso é o mais longe que ele poderá ir. Quanto mais dou por sua falta, mais jogo o resto que me cerca fora. E por jogar o resto fora, ele se agiganta. Calcule por hectare. E ele só começou com uma frase. Eu quero o pano de chão que estava aqui foi onde tudo começou e agora não consigo alcançá-lo. A distância só faz aumentar, o que é um perigo. Se é um perigo, posso querer negar. Não, o pano de chão não estava aqui. Você tem certeza de que estava aqui? Tem certeza de que você tinha um pano de chão? Quem se importa com o teu pano de chão? De que serve? Mas eu não preciso me explicar com uma palavra, muito menos com três. Muito menos negar. Negar é fugir. Agora eu posso entender o que é uma emoção. Eu quero verdadeiramente o pano de chão que estava aqui. Arrumo minhas urgências na ordem que eu quero. Dentro do sol quente da manhã.
30.11.11
28.11.11
Double stops
o cigarro aceso estrangulado entre os dedos, sujeitos que falam.
Apoiando o celular no ombro, aquele bração é um sofá extradiscursivo.
Como era seu costume, Carlota pensa
nos sistemas de exclusão do século 19 em sábados chuvosos.
As duas estão muito actantes hoje mas não se mexem para me ajudar.
Sigo direto para o meu quarto e faço as malas.
Elas ficam sozinhas na sala, palatalizando.
A casa é espaçosa para quem gosta e diz que não gosta.
A biblioteca é cheia para quem não lê e diz que lê.
Inácia e Carlota gostam de poetas neoparnasianos e me viram a cara
quando chamo seus fluxos de consciência de torrentes de cabriolés.
Eu não me importo, nunca espero elogios de quem me entende.
Etiqueta para ignorantes é distribuir elogios.
O mais difícil é sair de dentro de si sem precisar de focinheira.
Eu gostaria de ver o que elas guardam no sótão para ter em que pensar no trem.
Logo que cheguei me alojaram nos fundos, um aposento úmido com luz de lampião.
Conversávamos no escuro e ao dormir eu sempre caía no sonho errado.
Tive de trabalhar muito com minhas fantasias.
Na cozinha cheirando a refeitório de colégio interno,
o braço enorme me oferece um chá com Mussolini antes de eu partir.
Uma indireta.
Não falam em almoço ou saudades transitivas.
Repasso meu itinerário encaixando algumas mentiras
enquanto bebo na xícara feita por Inácia,
segundo ela uma nova concepção de objeto ocidental.
Carlota inveja minha errância, meu negligée, meus braços fininhos,
mas ao me beijar abrindo a porta da rua,
elogia a singularidade de minha “paginação”.
Sensação de ardência no estômago.
Na cabine, percebo que esqueci no criado-mudo do quarto de hóspedes
minha Plongée velha onde fiz anotações para o futuro.
Também não lembro de uma palavra que disse.
Revejo na máquina as centenas de fotos que tirei do Zoo de la Barben.
Inácia e Carlota só aparecem juntas duas vezes na frente de uma jaula.
Não dá para saber de que animal.
À noite me encontrarei com Alice no Baad Bukra.
Se ela não tingiu os cabelos de vermelho e estiver de bom humor,
talvez saiba reconhecer a jaula.
Depois de tanto tempo fora, todas se parecem umas com as outras.
24.11.11
Os 300 francos que você me emprestou em 1976
1.
2.
Flâneur da dialética ao drama barroco, o amigo de André Gide escreveu B-r-e-c-h-t com conhecimento das coisas comunistas. Saiu do túnel pela mão única, Lukács. O trabalho de recolher as passagens era transformar a União Soviética no retrato bem-passado de Walter Benjamin. As alegorias só aparecem visíveis na apresentação. Meu primeiro próprio era pura questão de reflexão. Um modo de pintar o momento como montagem. Contar a história em hieróglifos, fetiches da exceção. Já Baudelaire era uma beleza. Original, passado e trágico no banquinho ensebado da Escola de Frankfurt. Proust foi publicado por uma razão que se desconhece. Uma tradução que dá muito trabalho. Como restaurar a velhice na adolescência. Um homem nunca se consola dos prazeres que perde. Da emoção da época, da expressão nas caras de Victor Hugo. Dos títulos que poderia dar a todos os poemas sem título. Coisas com conhecimento de causa, cartas de amor em francês íntimo. A morte que chega no mundo a qualquer hora achando que é noite -- a universidade sem versos. Escreveu, escrito está. Esqueceu, esquecido está. Tanto faz homônimos ou heterônimos. Se a tia é portuguesa ou os lençóis estão amarfanhados. Camilinho sempre chamará a ciência de coisa. Esteta é o Alberto. Que não é amigo de André Gide, o flâneur da dialética à dama barroca. Desde o cubismo Deus ficou assim meio torto, saído do quinto dos impérios. Ponho o café no fogo e me conformo. A arte rivaliza muito com a análise. Atchiiiim.
Amora admitiu pela primeira vez não entender nada de Aristóteles quando lia na praia. Eu respondi que a arte dos livros pensadores e dos comedores de Dublin era um problema preceptístico que eu ainda tinha de resolver. Amora assentiu com o sorvete e Tartu chegou nesse exato minuto perguntando a que horas saía o nosso ônibus para Heidegger. Amora entendeu menos ainda. Piscou para mim porque desconhecia as modalidades de Tartu embora eu já estivesse acostumada. Sozinho ninguém sabia mesmo. Quando se espalhava a notícia de que ele estava chegando na escola, as aulas terminavam e os professores se escondiam no banheiro. Amora ficou metrificada quando lhe contei. Jakooobson, ela sussurrou no meu ouvido sem Tartu perceber. Mas ele percebeu o sorvete pingando. Virei-me para ele e disse que havíamos desistido da viagem há tempos, só ele não lembrava. Ele esmagou um besouro com o pé e senti uma espetada na boca. Vou pedir uma travessa de costeletas de porco bem grossas, ele não se fez de rogado. Sua voz era baixa, estilística. Um memorialista supostamente não deve esquecer de nada. Amora fazia um estudo sistemático de sua barriga. Estou gorda? É impossível que aquilo que não é seja menos ainda, disse Tartu, filosófico. Arrume as malas e vá pro diabo, seus olhos cinzentos me diziam. Ele estava precisando é de raízes nutritivas e hipnóticas que suprimissem aquela fome e sede de saber, pensei comigo mesma. Amora lambia o vazio. Temperamento não se partilha. Tartu assobiou um scherzo. Não era novidade. A brisa trouxe um cheiro de chumbo. Quanto precisarei morrer para alguém me entender?, ele soltou a pergunta no ar como um balão. Nem nos preocupamos em alfinetar. Sem recepção e efeito, ele acabou indo embora sem as costeletas. Melhor assim. Molière mostra o mundo mas sempre tem um espírito de porco que acha que é Munique.
23.11.11
Venha morrer na minha casa
Eu só tinha um título. E a vítima. Precisava da história que inventaria para atraí-la ao meu destino. Era uma noite seca e eu ouvia atentamente o silêncio embrulhando as folhas que caíam na calçada: se estiver escuro à tua frente, nunca fica de costas para ele. Eu encarava a janela fechada fingindo esperar alguém. Do outro lado da vidraça o céu negro fingindo esperar tudo que espero de uma pessoa. Ao meu lado, a cadeira e a corda. Aqui me darás a mão. Aluguei o apartamento há dois meses, parece que moro ali há centenas. O inquilino perfeito. Sem ninguém além das paredes brancas. Quase como gelo escapado ao mar. O prédio antigo e comercial é um cubo cinza. O próximo à direita. Subo pela escada, na curva trêmula das lixeiras. Em algum andar eu preciso que acabe. Não mandei ligar a luz. Quando entro, acendo a lanterna. Minhas pupilas se dilatam em três segundos. Esqueço a mão nos cabelos. Ninguém me pagou para fazer isso. Não há contrato nem veneno de rato no armário da cozinha. Se trago um café da rua, bebo depressa. A investigação será fácil. O espaço exato das folhas dos jornais. Sem sangue nas luvas para contar-lhes o resto. Só profissionais planejam mínimos detalhes. É a minha primeira vez. O ódio tem mais tempo. Lágrimas formando espuma. Custo a dormir. Ouço risadas na água, não sei a mando de quem. O ruído dos meus lábios debaixo de mim. Fico me perguntando como uma morte a mais no mundo ajudará na formação do meu caráter. Metade do meu cérebro teme por mim. Metade ninguém metade daqui a pouco. Trago anotado o número do telefone no espelho embaçado do banheiro. Certas pessoas não deviam confiar nos amigos. São os primeiros a juntar-nos ao sal para que não fiquemos insípidos. Não me surpreenderia se cortassem metade da cena e a virassem na pia. Há uma outra. A casa sempre aberta, a mesa sempre farta. O conforto de olhos recostados, guarda-chuvas transpirando, ferramentas úteis ao trabalho, à família. O conforto do entulho. Não precisar me mexer para sair do lugar. Esta é a minha parte. Apegar-me a coisas que teria coragem de perder. A mesma noite de volta outra vez dizendo venha jantar comigo. Se ela soubesse que era mentira, não atenderia. Não dobraria o corredor. Sairia correndo da areia sem deixar nenhum rastro. Mas já era um percevejo no alfinete ao cruzar minha porta num clarão de fósforo. O que queria de mim não conseguiu. Não valia muita coisa, mas era meu. Assim seja.
9.11.11
O medo de
Irene era casada. Tinha um amante, um apartamento para encontros e dois filhos. O marido, juiz. Da alta sociedade vienense. Até que um dia uma mulher desconhecida descobre o adultério de Irene e passa a chantageá-la. Irene enlouquece e. A desconhecida a assedia sempre que Irene está na. O marido então. Irene tremia sempre que. Os filhos começam a. Um dia o amante resolve. Os criados sabem quando. A sensação de náusea foi ficando cada vez mais. Irene precisava fazer com que. Subiu as escadas com. O marido nem. Se o motorista fosse um pouco menos. A primeira medida foi. Entrou no escritório e. Quando se lembrou da. Imediatamente recusou-se a. Postou-se atrás das grades onde. Acabou que de repente. Ainda doía um. Abriu os olhos e. Muitas vezes.
7.11.11
18.10.11
17.10.11
Planejamento da derrota
5.10.11
Antenor Carnes Nobres e Exóticas
Nunca comi avestruz.
Comeu sim, linguiça de avestruz. Lembra?
Se não lembro, não comi.
Comeu sim.
Eu me lembraria do enjoo.
Está enjoada?
Reduza a velocidade.
Mais lento que isso não dá.
É.
Não entendi.
Não entenda. Quem é o ministro da alimentação?
Não sei, usa coturno?
A carne do jacaré se come até o rabo.
O rabo também?
Assim ele é servido.
Que o jacaré só me veja de partida.
Ele ofende as minhas sensibilidades.
O jacaré?
Não, o cara que escreveu “Ele ofende as minhas sensibilidades”.
Suscetibilidade.
Ele ofende em tradução direta. Merda.
E ainda usou o carimbo do partido.
Pega um cigarro na minha bolsa.
Faça o retorno mais ali na frente.
Quer voltar?
Ela sabia que eu ia voltar. Não podemos continuar aqui.
Coloque dois cubos de caldo de carne
na panela de pressão e deixe dourar bem.
Capivara enrolada. Rua da Glória.
Oi?
Patê de tatu. Quero comprar patê de tatu.
um bom lugar para se trabalhar
todo mundo tem seu assassino no quarto dos fundos,
diz Tia Thally recheando um cream cracker
com miolos do Petiso Orejudo da esquerda
para a direita na mecânica das cartas líricas
pêssegos & penumbras
nosso apartamento sofre a influência
de todos os apartamentos em volta
naqueles poucos segundos de costas
5.9.11
A prateleira de cima
Ninguém sabia melhor do que ela
que ele não devia fumar.
E pegou o revólver.
A calma do jeito que resolveu ter.
Com duas mudas de fronhas.
3.9.11
Arear as panelas de alumínio
Arear as panelas de alumínio.
Arear bem as panelas de alumínio.
E descansar na pedra quente do sol.
Descansar bem.
9.7.11
16.5.11
A lareira finalmente ficou pronta
Daqui a trinta anos ou hoje mesmo recostará na poltrona diante do fogo e lembrará outra vez do dia em que ganhou a medalha de prata do torneio intercolegial de vôlei. O problema será evitar que os pardais construam ninhos no alto da chaminé. Não me agrada a ideia de sufocá-los enquanto aqueço os ossos com a mesma lenha que usarei para queimar minha antiga coleção de cartas encontradas na rua. Os velhos cartões-postais de amigos em viagem, fazendo de tudo para não se esquecerem disso. Caixas de fósforo do mundo. Palitos de todas as cores e formatos seguindo trechos do mapa. Uma fina camada de desonida no rosto. Ontem no metrô gritei inha e dois terços das senhoritas olharam para trás. É um velho truque que R. me ensinou quando não se consegue lembrar o nome de uma mulher. Parole morte. Não dizer muito. Dizer o que basta. Aula de métrica, primeiro semestre do segundo ano. Para controlar a sobrecarga de expressão da juventude. Quando a palavra é pouca, leia-se por dentro. Tirando a casca com a delicadeza tímida dos violentos, para que não se rumine além do necessário. Não precisa ir muito longe. E o amor é sempre uma boa desculpa para ficar. Enquanto atiça o fogo, outras línguas morrem junto com os pardais.
6.5.11
O prefácio
A Solitaire é a única herança que meu pai me deixou. Uma casa colonial avarandada de doze quartos que depois de sua morte transformei em hotel. A trezentos quilômetros da capital mais próxima, não há mar nem montanha ou fontes de águas minerais. Nada que possa atrair turistas ou enfermiços. É apenas uma passagem, uma parada para um viajante cansado. Meu pai era comunista, ou pelo menos foi o que sempre ouvi. De minha mãe nunca se falou, e eu também não perguntei. Quando completei dez anos, ele me colocou num internato na capital e só voltei à cidade depois de minha formatura para tomar conta da casa. Não me disseram como ele morreu. Não vi o corpo. Não velei. Não enterrei. Mandei rezar missa porque assim quis a família, duas irmãs solteironas carrancudas a quem nunca chamei de tias. Eram as senhoras. Não vi o corpo do meu pai porque não havia corpo. Ele desapareceu. Dez anos após seu sumiço foi dado como morto. O vizinho da fazenda ao lado disse que meu pai foi levado por soldados do exército numa manhã de novembro de 1973. Ninguém da cidade se coçou ou comentou. Trancaram portas e janelas e deixaram o tempo passar. O tempo passou e levou também o meu vizinho, morte natural, falência múltipla de órgãos e hectares. As senhoras me pediram para eu trocar o nome da propriedade. Solitaire era um nome triste, de recordações infelizes, e estrangeiro ainda por cima. Não concordei porque foi como sempre conheci a casa, não porque gostasse particularmente do nome. Não me afeiçoo a palavras. Elas insistiram e quando me perceberam irredutível, disseram que era um nome de mau agouro, nome de bordel, de mulheres à venda. Solitaire não passava de uma puta. A vagabunda da capital que fez meu pai se meter com política. Não estiquei o assunto. É tão desconcertante presenciar anciãs perdendo a compostura. E se meu pai morto estava, morto também estava o passado. E passado é fruta que não se abre. Expulsei as duas de minha propriedade e só as veria novamente no dia de sua dupla morte, hanseníase. Escolhi os caixões mais baratos e as enterrei no cemitério da capital, para ficarmos bem mais longe do que na morte. Não demorei para decidir o que faria com a casa. A Solitaire hoje fica na beira de uma estrada nova e movimentada, mas seu interior é todo silêncio e calmaria, o que nenhum hóspede entende. E por ser assim, seu nome ganhou fama na região e seus quartos raramente estão vagos. As tarifas não são caras e servimos um farto café da manhã, além de almoço e jantar. Eu aqui vivo sem ninguém, só com a ajuda de três empregados. Um para cuidar da parte externa, outra para a parte interna e a cozinheira. Ganho o suficiente para viver e mais do que viver não preciso. Moro no quarto que era de meu pai porque assim decidi sem pensar. Durmo na cama que era dele, guardo minha roupa no armário dele e escrevo na mesa que ele deixou para trás. Os móveis antigos são mais resistentes e não vi motivo para renovar despesas. A escrivaninha fica de frente para uma janela que pouco abro e tem seis gavetas fundas onde guardo minha minguada papelada e os documentos que meu pai não queimou. Guardados na mesma pasta que encontrei quando voltei, os papéis amarelecidos do meu pai são a escritura da propriedade, recibos de armazém, uma nota de compra de um relógio Omega, receitas de um oftalmologista da capital, bulas de remédios vários e um caderninho preto de anotações manchadas de café. Na primeira folha, com uma letra miúda de oblíquo anonimato, alguém escreveu Solitaire. Não há datas, nomes, endereços ou telefones. Nenhuma confissão particular ou assinatura. Nada que tenha interessado à família ou à polícia do exército. São frases de sentimentalidade incoerente e observações fragmentadas, memórias infantis, algumas escritas em formato de poesia que parecem ser poesia mas desconheço. Nunca perdi tempo avaliando qualidades abstratas. Às vezes penso que são mensagens cifradas. Alguma forma oculta de solidão ou patologia. Não procurei saber a autoria nem por que meu pai guardava aquelas bobagens de sua importância. Levei meses para entender a caligrafia exasperante e traduzi-la para a minha, que transponho para este livro não sei por quê. Posso ter errado algumas palavras. Inventado outras. Deixado em branco. Meu pai agora não precisa mais perdoar a ninguém.
28.4.11
Dream fitness
São dez horas da manhã de uma noite maldormida quando decido testar os novos pneus Protek Max da bicicleta. Eu vou precisar deles para cumprir a missão que me foi destinada. Chove e a rua de terra batida está escorregadia, o que não me impede de rodar maciamente até a pista de asfalto e dali descer a Estrada do Sumidouro na direção da Varick Street, onde ouvi dizer que há inúmeras tipografias antigas ainda em funcionamento. Sinto nas curvas o cheiro de chumbo das Mergenthalers, seu ruído ensurdecedor, e meus pelos arrepiam de prazer como na primeira vez. Mas não freio e logo à frente viro à esquerda, costurando entre carros apressados até o início da Pont du Gard tão ensolarada que depois de tudo não vou querer pensar em sol por um mês, colocando tudo no papel. Os pneus novos resistem bem às trilhas de lama antes de cruzarem a Smolenskaia os músculos de minhas pernas começam a pedir arrego. Na Bab Agnaou diminuo a velocidade, seco o rosto e desligo o iPod. Faltam ainda quarenta minutos para eu chegar ao meu limite, o alvo preciso. Ouvir Impromptus não ajuda muito. Não retornarei pela Diego de Ordás pois minha cabeça já está formigando e em algum lugar deve haver um atalho da Calle Lima à Tamarineira. Quanto mais pedalo menor é a vontade de me mudar para cá. Por onde passo todas as pessoas parecem querer ir para algum lugar, dar em alguma coisa. E somem no vapor. Aponto para Quakers Hill e estou subindo novamente enquanto a paisagem. Tomo meu primeiro gole de gatorade na Via Amalfi, de frente para o mar de limoncello. Penso em parar no Duomo di Lucca para visitar o retrato do meu avô materno na carteira, mas a mãe do meu pai, com ciúme prussiano, lembra que a sua Pommern foi engolfada pelo Báltico da segunda guerra e eu não conseguiria mais passar por ali, nem que fosse um Spitz sem plumas. Até agora não consegui fugir da civilização para usá-la como estante de livros. Só os nomes vão mudando. Um Toyota FJ Cruiser passa raspando por mim e sou obrigada a avançar por um matagal, trombando numa árvore. A joelheira direita se foi. Estou perdendo a concentração. O oxigênio. Mão direita ou mão esquerda enrijecem no guidom. Estou perto agora de Matamoros. Consulto o monitor cardíaco. Buracos e pedras. Ele é tão simpático comigo. Mas a verdade é que me sinto febril quando saio da Avenida Amazonas, entro na BR-040 e me restam cinco minutos para o fim. É muito difícil ser uma pessoa com quem não consigo falar. Evitar correntes secas quando uma gota por elo basta. Obrigar-me fisicamente a lançar mão da chave multiusos para o desânimo num trecho comprido de águas rasas. Na porta de casa vejo que os pneus se regeneraram sozinhos. Perco toda a noção de tempo e distância quando finalmente tiro a venda dos olhos e guardo a ergométrica na garagem antes que me chamem para o almoço.
25.4.11
Shaken, not stirred
A senhorita Bishop detesta poemas confessionais. Confessou isso numa folha fedorenta de jornal. Palavra por palavra por palavra. Clavicórdia, ela poderia ter ficado quieta mais esta vez. Eu poderia não ficar sabendo como não sabia que ela vivia ali na Antônio Vieira a poucos metros de mim na Gustavo Sampaio. Lia versos de Yeats sob a barraca de sol enquanto eu brincava com meu baldinho na areia molhada da Academy of American Poets. Mas é direito dela não gostar de poemas confessionais, sentir saudade da primavera no hemisfério norte e comprar pneus para o MG com o dinheiro dos prêmios literários. Para ser um bom poeta, a pessoa tem que marcar pelo telefone com antecedência. Como pode ter só 53 quilos e parecer tão gorda?, minha mãe comenta com meu pai, olhando a foto no jornal. Cara de prato com dois fundos teatros castanhos sempre piscando demais. Ela quase nunca vai à praia. Meu pai revira os olhos sempre que agraciado com a maledicência feminina. Ela come figos maduros com presunto no almoço e frequenta leilão de potros com poetas jovens ainda na gaveta. Depois que ganhou o Pulitzer, passou a escrever dentro da gaveta, porque se alguém chegasse de repente, ela poderia fechá-la depressa para não ter que mostrar nada ao curioso inútil. Com a mesma idade de Bishop ao chegar ao cansativo Brasil, eu cheguei na Samambaia. Fernhill. Também sem saber que ela havia morado ali na mesma rua quarenta anos antes de mim, cartografando o limo. Rua Djanira. A antiga fazenda, esquartejada e loteada, virou bairro. Ali também Djanira pintou o fundo de sua piscina novecentos metros acima do mar. Onde nuvens alcobacinhas continuam entrando pelas janelas das casas mofando portas, roupas, nervos, a obra completa. Nuvens carregadas de umidade a quem na verdade chamam neblina -- fog, em elizabetano. Ou ruço, como dizem os locais. Não há mais pés de caju, nem nunca vi samambaias. É o fundo do poço de Yaddo. Nunca morei em Ouro Preto. Ainda bem, senão eu poderia pensar que a senhorita me persegue e a senhorita pensaria que eu a persigo. Eu gosto de poemas confessionais. Não me afetam. I must lie down where all the ladders start.
4.4.11
Dias abafados
Encontro na
morte um velho amigo.
Vivo,
ansiava morrer.
Morto,
hesitava.
Abracei-o
e apoiei a cabeça em seu peito.
Magro,
veias saltando, seus braços falharam.
Ouvi
uma tristeza que não pôde evitar.
Tão
diferente nossa pele uma da outra.
Naqueles dias abafados foram a minha salvação.
21.3.11
Oficina
Abriu a gaveta de tipos que habitamos
e imprimiu a chumbo as tolas palavras
de amor que eu lhe disse.
Publicados depois de mortos,
os versos não encontraram
outras para substituí-los.
14.3.11
A loja de roupas cansadas
A loja de roupas cansadas merece uma visita.
Faz parte da boa educação na vida adulta
mostrar aos filhos a precariedade da existência.
A fábrica de cimento, melhor deixar
para o dia em que se apaixonarem.
7.3.11
Pensa na saudade
Pensa na saudade
e as lembranças recuam, assustadas.
O algodão continua ali.
Doce. Desmanchando na boca.
5.3.11
A outra é escrever
1.3.11
A mala está pronta no quarto
A mala está pronta no quarto.
O presente não conjuga mais as paredes.
Há sempre uso para o que de tempos em tempos bate asas.
É como ser criança outra vez.
Amassado entre as meias de dormir,
coloquei-o no trem que levaria ao porto.
23.2.11
A carteira vazia espera a menina
A carteira vazia espera a menina voltar das férias.
O caderno em branco espera uma linguagem de tripas.
A pequena desenha bolhas na água
antes de expor ao fogo os dois lados da carne.
A mãe espera uma vaga no estacionamento.
O pai escolherá o de madeira mais barata.
16.2.11
As primas procuram sob a cama
As primas procuram sob a cama o camarim de lençóis.
Os primos pingam moedas nos cofrinhos.
Querem ver para crer e dividem uma poltrona.
Ao fundo risinhos de uma outra vida.
Uma menina traz a pipoca. Pouco falta agora.
A dois passos dali uma fila de baratas donairosas
cruza o tapete vermelho, as asas palpitando.
Os primos despem-nas com olhos arregalados.
Sedas, plumas, tiaras e pedrarias.
As meninas acendem a luz do palco e deixam o quarto.
Os ninhos da casa suspiram.
As mulheres do seu tempo não são mais feitas de carne.
15.2.11
Se ela disser quinta-feira
Odeia
a própria cara.
7.2.11
Cranberries
Quando ela entrou pela porta da cozinha,
vi em seus olhos que havia acabado.
Perdi o apoio dos pés.
Conversas não adiantariam mais.
Já havíamos moído toda a carne.
Voltei-me para meus amigos.
Eram nove pessoas transpirando álcool numa cozinha abafada
e alguma coisa dentro de mim se aconchegava.
Outra incomodava.
Na sala alguém ouvia Cranberries sem parar.
Ela teria rido de mim se já não me ignorasse.
Todos teriam rido de mim se já não estivessem rindo de outra coisa.
Sem tirar o cigarro da boca, ela abriu a geladeira num impulso motor.
Os músculos de minhas costas trincaram.
A geladeira abraçou-a.
Eu não tive a mesma sede.
3.2.11
Estética a Nicômaco
Não tenho pai, não tenho mãe,
não tenho irmão, nem amigo.
Tenho uma rapadura de laranja
presa por arame farpado
numa moldura de dez por quinze.
Sou muito afeiçoado.
30.1.11
Crescem como amendoeiras
Cercado do
desafeto de seu corpo,
recolheu-se
à mesa dum café.
Uma
congregação de cabeças à sua volta.
Uma
cabeça é uma religião.
Crescem
como amendoeiras,
fazendo
sombra umas às outras.
Nem
por isso o sol se apressa.
Era
o caso.
Elas
seguiam em fila para a água.
Quando
se fecha um livro,
as
palavras sufocam.
Sem
ler e escrever corretamente,
adormece
o açúcar no fundo da xícara.
28.1.11
Reserva animal de lembranças
Cortinas não existem quando a rua não está olhando.
Ninguém entraria naquele amor.
Reserva animal de lembranças,
um sorriso minúsculo à distância
assopra um bolinho quente,
dando à língua a procura de uma forma.
7.1.11
Todo anel é persuasivo
Todo anel é persuasivo.
Convence alguém de alguma coisa.
Nem que seja o dedo.
Não passa em branco.
Como um modo de andar,
engastado na terra
antes que afunde.
Outros tipos de anel são desconhecidos.
3.1.11
Carbono 14
Tudo o que pode ser visto de cima
é o que está por cima do que está
por cima do que está por cima.
Às vezes ouve-se um lamento.
Varíola
A
partir dos quatro anos de idade
já se reconhece um ovo podre.
Não é preciso arte ou tecnologia.
Fácil como bater a porta.
Pegar varíola.
Deixar o livro como está.
Envelhecer.
Cada classe tem seu uniforme.
Responder uma pergunta que tem todos
os dentes de leite é bem mais difícil.
1.1.11
Jardim Botânico
Não percebe os movimentos da noite.
Nove ou três da manhã para ele são todos iguais.
Ângulos retos. Impressos ou desenhados à mão.
Noites são dias descascados, o que a casa
devia entender no sentido que pudesse.
Como o pai fosse de certa classe de gente muito usada,
a menina combinou com os passarinhos de não cantarem
pela manhã e os dias passavam pontilhados, sem letras.
Descoberto o engenho, ele fez para si um violoncelo
das árvores mudas e concretou o jardim em 3 paralelas.
A organização familiar é uma planta de
inverno que dá flores até morrer.
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