29.5.13

vou seguir a sua boca no meu ombro




vou seguir a sua boca no meu ombro
palato, dentes, lábios e língua
vou seguir a sua boca pelas ruas
as que não precisam de nós duas
vou seguir porque não dá para esquecer
o que ela abre fecha molha e gira
sem precisar de você






24.5.13

Estilística, primeira aula




A rasura do estilo individual em poli-individual, uma técnica epifânica reativa ao que se passa no mundo contemporaneísta, se espalha e se perde no mundo dos livros pouco a pouco sem que as palavras permaneçam as mesmas --- felizmente para nós a língua é uma água-viva --- embora espelhem a mesma vida achatada, onde os personagens que o habitam não passam de borboletas trêmulas ou elefantes no antiquário. Os adictos em literatura, desbelotados na teia contingencial dos mercados, saguis arbóreos do conhecimento, se expõem nas livrarias, nas editoras, em redes sociais, sites, peças de marketing (indoor, outdoor, hocus-pocus), histerizando um simulacro e exigindo um espaço no território da dominação, onde os negócios chafurdam no lodo ancestral da memória ao lado do desassossego passivo, fragilizado, dos agenciadores da palavra escrita. Os leitores comuns, por sua vez, vampiros da esperança requentada num momento de ocaso das ideologias, querem novidades (de preferência para socá-las numa teoria de tudo, que nos perdoem os físicos), buscam novos trapezistas do processo narrativo --- não importando se são de idem ou ibidem os malabares --- para que lhes sobreviva o arremedo de cultura que reforçará os pilares de suas estantes psicodomésticas, já roídas pelo analfabetismo filosófico imanente. E ainda hoje perguntam qual o papel da literatura em feiras literárias, convenções acadêmicas, mesas de debates, programas de TV, rodas de pôquer, sensualizando por embaralhamento conceitos de literatura engagée versus literatura blasé, per se, mais do quê. A pandêmica criticose universitária de sempre. Qual o compromisso atual da literatura,  ruminam, mascando semantemas contaminados de interpretite. Como se para autores e leitores não bastasse o  fogo --- a potência de fricção. Não. Têm de recortar o espaço e estabilizá-lo. Homogeneizar, fazer papinha, conteudinagens, fabulismos pastichosos. Não bastam o assomo poético da página criada/lida, o rastro na geografia do acaso. Repito, não lhes basta o fogo. Ao contrário do que afirmou Kafka,  para nós o importante aqui é que atravessando a luz há restos de palavras.

Discorram livremente sobre o tema em 30 linhas e 2 horas. 
Boa sorte.






3 poemas de Anna Akhmatova




Alguns vão pelo caminho reto


Alguns vão pelo caminho reto,

outros andam em círculos,
anseiam regressar à casa paterna
e esperar uma amiga do passado.
Porém meu caminho não é reto ou curvo,
levo comigo a desventura,
seguindo até o nunca, o lugar algum,
como um trem sobre o abismo.


Último brinde


Bebo à casa em ruínas,

à vida atroz,
à solidão a dois,
e por ti bebo também.

À mentira de lábios traiçoeiros,

ao frio mortal  dos olhos,
ao mundo cruel e rude,
e a Deus, por não salvar ninguém.

27.06.1934

Palácio Sheremetev


E eu era sua mulher...


Ele adorava três coisas na vida:
pavões reais brancos, 
música ao pôr do sol,
e velhos mapas da América.
Odiava o choro de crianças,
geleia de morango para o chá
e a histeria feminina...

E eu era sua mulher...



(Trad. livre MP,  2013)






10.5.13

Sem que nada as visse



Em algum lugar do universo há duas luas cegas que não brilham. Duas luas próximas sem sol, e, como olhos que não veem, imaginam o que as cerca e mais além. Quando imaginam, não são outras luas distantes o que veem. Nem suas próprias origens. Para onde vão. Quantas direções tem o espaço.  Ou o que possa enxergar tudo aquilo que enxerga. Aquilo que vê sempre quer ver mais. E mais. O que vê aprende vendo. O que vê sabe o valor do brilho e das cores, e quer também brilhar e ser cor. As duas luas cegas  não sabem que não brilham, não sabem que são cegas, não sabem que são luas, mas por algum motivo sabem que uma está ao lado da outra. Em forma de casa. E se uma delas acha que não sabe da outra, imagina. Aprende imaginando. Uma lua cega imagina se ela é maior ou menor do que a outra. Se é mãe, se é filha. Esfera ou cubo. Qual a mais bonita, a mais cheia de si, e se minguavam ao mesmo tempo. Se havia estrelas. Do lado de qual? E quantas? O que são estrelas? Caracteres de seus nomes? As duas luas imaginárias e cegas que não brilham ficam por lá, suspensas no escuro, imaginando. Criando o universo - como pequenas ilhas. Contando histórias para a terra dormir. O tempo evaporar. Sem precisar ver mais e mais. Sem precisar do claro e do escuro, e de tudo mais que brilha. Foi assim por milhões de anos. As duas luas cegas e tudo que criaram sem que nada as visse ou fosse visto por elas.