29.9.13
É o que dizem
Dizem que se é feliz num hotel nas montanhas.
Quando estamos disponíveis para outras pessoas.
Ombros nus. Pés nas águas magnesianas.
E o nome de ninguém nos interessa.
Quando se toca um corpo proibido nos escritórios.
E a memória vira gelo que você derrama num copo.
Confessa ao padre, um peso de si mesmo sobre o tapete persa.
O céu rachado de azul, uma canção já cantada.
Quando não deixa a tragédia tomar o lugar do seu próprio desespero.
E sabe usar palavras, ideias e açúcar com abuso de confiança.
Quando se deixa rir ao lado das axilas dos nós não sabemos.
E a ausência do outro é muito agradável.
Dizem que os pedreiros têm almas simples.
Um suor coado com álcool e miséria.
Um cheiro de café enterrado vivo.
Dizem que se é feliz um minuto antes da sentença de morte.
Como um cachorro correndo em volta da mala desfeita do dono.
E num colchão macio e obsceno.
Os pulsos apertados na guarda da cama.
Com beijo de língua e queijo curado.
O sabor de sol nas mentiras de amor.
Um dia que começa.
Frio como o chão.
É o que dizem.
Os ratos têm maus modos neste hotel nas montanhas.
26.9.13
Marcação
Ele entra no quarto.
Ele afrouxa a gravata.
Ele olha os móveis um por um.
Ajeita a fotografia presa no
espelho.
Contorna o rosto da mulher com
o indicador.
Adianta os ponteiros do relógio
carrilhão de mesa.
Puxa o lenço do bolso do paletó
na cadeira.
Dobra.
Vê os sapatos empoeirados no chão.
Pega os sapatos empoeirados do
chão.
Passa os dedos na poeira.
Devolve os sapatos empoeirados
ao chão.
Avança com a Torre.
Troca o durex que segura outra
fotografia.
Recorta uma notícia de jornal
com a tesoura.
Prende no espelho.
Escreve uma data com a caneta
marcadora na parede.
Anda pelo quarto.
Sussurra o nome de uma mulher.
Tira o perfume da caixa.
Coloca o perfume na caixa.
Empilha as caixas de remédios.
Faz uma torre até o alto da
data na parede.
A torre desmorona.
Recua o Bispo.
Consulta o saldo no canhoto do
talão de cheques.
Diz a quantia em voz alta.
Pega uma caneta-tinteiro e
escreve.
O cigarro queima no cinzeiro.
Os óculos escorregam pelo
nariz.
Para.
Pensa.
Escreve.
Risca o que escreveu.
Rabisca.
Desenha palavras.
Triângulos. Uma casa de
criança.
O telhado. Um lápis com cabeça
de Pinóquio.
Vai até o final da margem
direita.
Volta para a esquerda.
A pena arranha o papel.
A manga do casaco de lã
atrapalha
o movimento da mão direita.
Traga o cigarro sem tirar os
olhos da folha.
Pronuncia as palavras que
escreve.
Ao riscá-las fica calado.
Os lábios secos colam no filtro
do cigarro.
Escreve seis frases ininterruptas.
Morde a caneta.
Pensa.
Risca duas.
A fumaça ascende.
Olha a janela por cima dos óculos.
Volta ao papel.
Desenha estrelas de muitas
pontas.
Um barco à vela. A baía.
O barco saindo da baía.
Abre a gaveta.
Remexe cartas de baralho.
Procura mais no fundo.
Os dedos reconhecem a
empunhadura.
Seu rosto recua.
Esse movimento não estava no
roteiro.
O diretor não pede para repetir
a cena.
Ele aproxima a pistola do
rosto.
Os óculos firmes no nariz.
A pistola é o primeiro plano.
Ele não está mais ali.
Dura cinco segundos.
Um carro buzina na rua.
Ele vai até a janela.
Ele afasta a cortina.
O carro já passou.
Ele fecha a cortina.
Alguém bate à porta.
A mulher de branco o chama para
a ceia.
Ele apaga a luz.
Ele fecha a porta do quarto.
Não lembra o nome do filme.
21.9.13
[fica com meus cães]
a torneira enche o balde
desencorajo o corpo e
não olho o dia pela última vez
o rosto seco
nem lembro do primeiro
na mesa, escuta bem: se algo
acontecer comigo, fica com meus cães
será o poema
por mais que não o faças
tomo certa distância
do gesto que me impus
como uma rima
rente ao pescoço
nem profunda nem leve
foi ela que pediu para me ver
quando chegar, vai tomar o corpo nos braços
e dizer que nós
esta cidade
sinto-me em casa agora
19.9.13
Entre nós
Olho em volta de mim
o entre nós
que todas as coisas são
Por trás da porta encostada
de uma vida de escreves e anotas
teus leitores não devem
perder nada
O tiro pela culatra
que um milésimo antes
deverias ter ouvido também
17.9.13
"A Morte Morta" -- Ghérasim Luca
É com extrema volúpia mental e um estado de excitação física e emocional ininterrupto que busco em mim e fora de mim este número de acrobacia
infinita
Estes saltos contemplativos ativos e lúbricos
que executo
simultaneamente deitado e de pé
como o meu jeito perturbador
ou ignóbil ou profundamente afrodisíaco
ou completamente ininteligível
de cumprimentar de longe meus semelhantes
de tocar ou mover
com indiferença fingida
uma faca, uma fruta,
o cabelo de uma mulher
estes saltos convulsivos que provoco no interior do meu ser
convulsivamente integrado a uma grandiosa convulsão universal
cuja dialética dominante me era sempre acessível ainda
que eu captasse só as relações aparentes
começaram nos últimos tempos
a me opor sua figura impenetrável
como se
diante da tentação de encontrar
mais do que a mim mesmo
na superfície de um espelho
eu raspasse impacientemente o estanho
para assistir
aturdido
a minha própria morte
Não se trata aqui de uma dificuldade
no plano do conhecimento
ou de piedosa manobra de um homem
que admite orgulhosamente sua ignorância
Não reconheço em mim nenhuma curiosidade intelectual
e reafirmo sem o menor escrúpulo meu pouco interesse
por algumas questões fundamentais que preocupam
meus semelhantes
Eu poderia morrer mil vezes
sem me preocupar
com um problema fundamental
como o da morte
em sua dimensão filosófica
esta forma de deixar-se inquietar
pelo mistério que nos rodeia
sempre me pareceu realçar
um idealismo implícito
seja a abordagem materialista ou não
A morte como obstáculo opressão, tirania, limite, angústia universal
como inimiga real, cotidiana
insuportável, inadmissível e ininteligível
deverá, para se tornar realmente vulnerável
e, portanto, solúvel,
me aparecer nas relações dialéticas
minúsculas e gigantescas
que mantenho continuamente com ela
independentemente do lugar que ocupa
na ridícula escala de valores
Diante da morte
um guarda-chuva encontrado na rua
parece tão preocupante
quanto o diagnóstico sombrio de um médico
Nas minhas relações com a morte
(com as luvas, o fogo, o destino
os batimentos do coração, as flores ... )
pronunciar fortuitamente
a palavra moribunda
em vez de amada
basta para alarmar minha mediunidade
e o perigo de morte que ameaça minha amada
do qual tenho conhecimento
por um lapso de premonição subjetiva
(desejo sua morte)
e objetiva (ela corre perigo de morte )
me inspira um contra-ataque
na forma de um ritual subjetivo
( eu não desejo sua morte
-- ambivalência interior, culpa )
e objetivo (ela não corre perigo de morte
-- ambivalência exterior, risco favorável)
Construo um talismã-simulacro
seguindo um método automático
de minha invenção (o Olho magnético )
a fabricação deste talismã integra outros subdeterminantes
premonitórios, angustiantes, acidentais
necessários, mecânicos e eróticos
que delimitam em conjunto
um comportamento em relação à morte
sendo a única expressão viável
de um contato dialético com a morte
a única que realmente coloca
o problema da morte
tendo em vista sua solução (dissolução)
O estado de desolação-pânico
e de catalepsia moral
a que me reduziu a recente incompreensão
de meus próprios saltos dialéticos
nada tem a ver com uma atitude
intelectual
diante do problema do conhecimento
O fato de estes últimos trinta dias terem sido os mais obscuros jamais me perturbaram como a existência de um estranho ou de uma nova dissolução
Aliás, mantenho sistematicamente
em torno de mim um clima de névoa contínua
de mistérios pueris, simulados e insolúveis
proposital e voluptuosamente
confusos
Sabemos que a análise
como qualquer outro método
de interpretação racional ou irracional
é apenas uma possibilidade parcial
de desvendar o mistério
pois cada verdade descoberta
só faz encobrir-se ainda mais
conferindo a si um atrativo teórico
como o das mulheres irresistíveis
e histerizantes do início do século XX
que o amor cobria de capas
rendas, perfumes e vertigem
Não é o fracasso de minhas interpretações nos últimos trinta dias
o que me desespera
O que provoca o meu desespero, a minha perplexidade
o caos do meu pensamento e uma dor atroz
no fundo do meu peito
é o fracasso da minha singular
aparição no mundo no início deste ano
ameaçada de se dissolver
de forma lamentável
é a grande e monstruosa decepção
que me causa o meu próprio personagem
viciado na ideia de avançar
com uma agilidade jamais alcançada
à fronteira da vigília e do sono
entre o sim e o não
o possível e o impossível
para encontrar-se de repente
nos bastidores
em um mundo de ilusões
e erros fundamentais
que não perdoam e que transformam
minha incomparável e inimaginável existência
em uma ferida
Neste mundo à margem onde me sinto jogado sem saber o erro que cometi
(mesmo no mapa precário da culpabilidade) sem saber o que aconteceu comigo, nem por que não resisto aos efeitos catastróficos do erro, à avalanche de agressões e crueldades, provavelmente necessárias, que o mundo lança contra mim
Todas as pessoas ao meu redor me traem, sem exceção
Todos os objetos, todas as mulheres
e todos os amigos, o clima, os gatos
a paisagem, miséria, absolutamente
todos me olhando com amor ou ódio
tiram proveito de minha imensa fraqueza
(consequência de um erro teórico
que me escapa)
me golpeiam violentamente
com uma covardia abjeta
mas sem dúvida necessária
De repente, eu me vejo no quarto
com frio, com fome, sozinho, sujo
a traição edipiana à espreita
em todas as minhas sombras doentes, esquecido, miserável tremendo de frio
e de medo sob os lençóis molhados de febre e lágrimas
À luz
desses ataques terríveis e súbitos
(verdadeiros sinais de alarme)
os abraços doces que os acompanham
me parecem de repente suspeitos
e sinto a necessidade premente
de criar em torno de mim um vazio correspondente
ao vazio teórico que paralisa
toda a minha atividade mental
espalhando essa projeção
pois é intolerável
a mistura doce do bem e do mal
que o mundo lá fora me exige
imagem do duplo edipiano
e máscara mais sinistra do erro
Após este golpe inesperado
eu não posso suportar a ideia
de procurar refúgio nos braços da amada
em virtude de um instinto
de preservação mecânico
os braços da amada
participam também da violência
e sua cumplicidade invisível até aqui
aparece claramente se procuramos refúgio
se cometemos o erro imperdoável
de reduzir a realidade objetiva do amor
a realidades mais aparentes
e confusas do mundo exterior
Para evitar esta fuga
de uma ilusão consoladora
prefiro desmascarar a cumplicidade parcial
da amada do que idealizar
seus encantos compensadores
prefiro empurrar o meu desespero
até a última consequência
(que deve incluir
um resultado dialético favorável )
em vez de procurar um abrigo
para lamber e limpar
minhas feridas, a não ser que por um lapso adorável
a amada se confunda com candura
o frasco de veneno com tintura de iodo
Eu só preciso mover-me no quarto escuro à procura de uma
fotografia ou um lenço e me bater ou me picar com uma
agulha para entrar no mistério
desta gota de sangue na ponta do meu dedo nas causalidades eróticas
mais distantes e nas conjunções astrais, sociais e universais
mais inverossímeis
Eu sei que o meu desespero
projetado em todas
as pessoas que me cercam
pode sugerir
mania de perseguição
na fase aguda, mas este aspecto
de meu comportamento não abole
o significado objetivo
que atribuo à paranoia
especialmente no que se refere a denunciar pessoas que amo
eu disponho de um material analítico
convincente por si só
sem a necessidade
de lhe apor minha personalidade maníaca
Além do mais, sejam minhas acusações legítimas ou não
O que me interessa, o que sinto como uma necessidade imperiosa, é apoiar com meus atos, mesmo em suas consequências mais absurdas, o vazio teórico que me ocupa, independentemente da dor passageira que me inflijo e da categoria masoquista em que supostamente caio
Para mim, o único prazer objetivamente desejável, aquele jamais provado, só pode ser suscitado por uma euforia mental concomitante jamais imaginada, jamais pensada
Os erros teóricos que tive de cometer
e que nos últimos tempos me tornaram
tão vulnerável ao sadismo permanente
do mundo exterior
só podem encontrar uma saída
se eu me mantiver no equilíbrio
instável da negação
e da negação da negação
única forma de estar sempre de acordo
consigo mesmo
O vazio teórico que sinto
como se vivesse dia e noite
numa máquina pneumática
me obriga a enviar a todas as pessoas que me amam
cartas de rompimento onde denuncio o seu ódio
tendo o seu amor por mim todas as características
latentes do ódio geral
O afastamento físico das pessoas não é apenas uma prática do meu vazio teórico, mas uma medida básica de segurança
Depois de alguns dias
eu não vejo ninguém
e se a ausência da mulher amada
da voz e do calor humano
me causa às vezes um medo assaz excitante
por outro lado minha solidão forçada, sistemática
cinegética, agrava além de todos os limites
o meu imenso e incomensurável desespero
Não sei mais o que fazer
Depois de tudo feito
para estar de acordo comigo
(como está de acordo a bala
com o sangue que derrama)
depois de evitar todas as armadilhas acolhedoras
que o mundo me ofereceu
para compensar, em sua perfídia edipiana
o grande mal que me fez
depois de refletir o meu vazio teórico como num espelho do espelho
ur minha vida deserta, meus gestos interrompidos r minhas insônias
torturantes e prolongadas
ur minha agonia perpétua
não sei o que eu poderia fazer
do meu personagem petrificado por tanto desespero
a não ser colocá-lo cara a cara com a morte
porque só a morte pode expressar
com sua linguagem obscurantista e fatal
a morte real que me consome
me transpassa e obscurece
até a aniquilação
No meu caminho para a morte
como para a conclusão quase lógica
de minha negação
tropeço num obstáculo quantitativo
em que reconheço
como nas vísceras podres de um porco
toda a trivialidade do
Criador
sua imaginação elementar
utilitária e ignóbil
Esta morte bruta, natural, traumática ainda mais castrante do que o nascimento
que ela reflete e complementa me parece insuportável não
só porque
carrega a ideia de castração
a aniquilação física monstruosa mas porque esta
morte unidimensional não corresponde aos saltos dialéticos que nos conduzem
sua oposição fixa, mecânica, absoluta torna impossível a livre expressão
das necessidades, em que causas e efeitos são impedidos
de partilhar seus
destinos
A presença permanente da morte
na noite fúnebre do meu ser
não assumirá jamais
os aspectos paralisantes da morte
inventada pelo
Criador
esta morte (esta vida) estruturalmente
religiosa desaparecerá com a última
repressão
A morte que acolho como uma necessidade
como a válvula do desespero
como uma réplica do amor e do ódio
como uma extensão do meu ser
no interior de suas próprias contradições
esta morte, eu reconheço
em certos aspectos angustiantes
e lúbricos do sonho, na toxicomania
na catalepsia, no automatismo
ambulatorial
sempre na intersecção do homem e da sombra
da sombra e da chama
eu a reconheço em minha necrofilia mascarada
quando obrigo minha amada
a manter durante o amor
uma passividade glacial
eu a reconheço mesmo no ato mecânico
do sonho, no desmaio
ou na epilepsia
mas nunca reconhecerei mesmo em meus sonhos mais
autoflageladores
a objetividade desse fenômeno sinistro
que nos monotoniza
nos torna repetitivos e nos extermina
como se fôssemos a vítima
mil vezes milenar
de um monomaníaco senil e cínico
O prolongamento desta morte necessária
que não se oporá mais traumaticamente
à vida e que a resolverá
no sentido de uma negação ininterrupta
em que sejam perpetuamente possíveis
a reciprocidade e a inversão causal
o prolongamento desta morte objetiva
como uma réplica à minha vida objetiva
através da qual passa
a uma tensão sempre extrema
a objetividade incandescente de meus amores
me obriga hoje
em um estado de desolação-pânico
sem limites, de catalepsia moral
impelida ao vazio teórico,
e de desespero insolúvel, macabro
e sintomaticamente revolucionário
a agravar este estado de irritação aguda
exasperando-o até sua impossível
negação, até a negação exasperante do impossível
onde a morte
para ser devorada como uma mulher
deixa suas dimensões
traumáticas e se ilumina qualitativamente taumaturgicamente e
adoravelmente de humor
Usando os signos cifrados
de nossa tatuagem interior
apelando de novo
ao Irrespirável
Triângulo do artifício
à
Mulher de mil
Peles
do automatismo
ao
Coração
Duplo do sonambulismo provocado
e
à Grande, à Inigualável
Baleia
do simulacro
Há vários dias que faço tentativas de suicídio que não são apenas
uma consequência lógica
de minhas decepções, de minha saturação
e do meu desespero subjetivo
mas a primeira vitória real
e virtual
sobre esta
Paralítica
Geral
Absoluta
que é a morte
(La Mort morte, escrito em 1945, é um relato de cinco tentativas de suicídio do poeta romeno, acompanhado de bilhetes de despedida e fragmentos da escrita automática de Luca durante o ato. O texto é uma prefiguração da última e bem-sucedida tentativa de suicídio, por afogamento, no Sena em 1994. Tradução de Maira Parula, set. de 2013.)
(La Mort morte, escrito em 1945, é um relato de cinco tentativas de suicídio do poeta romeno, acompanhado de bilhetes de despedida e fragmentos da escrita automática de Luca durante o ato. O texto é uma prefiguração da última e bem-sucedida tentativa de suicídio, por afogamento, no Sena em 1994. Tradução de Maira Parula, set. de 2013.)
Assinar:
Postagens (Atom)