26.9.13

Marcação




Ele entra no quarto.
Ele afrouxa a gravata.
Ele olha os móveis um por um.
Ajeita a fotografia presa no espelho.
Contorna o rosto da mulher com o indicador.
Adianta os ponteiros do relógio carrilhão de mesa.
Puxa o lenço do bolso do paletó na cadeira.
Dobra.
Vê os sapatos empoeirados no chão.
Pega os sapatos empoeirados do chão.
Passa os dedos na poeira.
Devolve os sapatos empoeirados ao chão.
Avança com a Torre.
Troca o durex que segura outra fotografia.
Recorta uma notícia de jornal com a tesoura.
Prende no espelho.
Escreve uma data com a caneta marcadora na parede.
Anda pelo quarto.
Sussurra o nome de uma mulher.
Tira o perfume da caixa.
Coloca o perfume na caixa.
Empilha as caixas de remédios.
Faz uma torre até o alto da data na parede.
A torre desmorona.
Recua o Bispo.
Consulta o saldo no canhoto do talão de cheques.
Diz a quantia em voz alta.
Pega uma caneta-tinteiro e escreve.
O cigarro queima no cinzeiro.
Os óculos escorregam pelo nariz.
Para.
Pensa.
Escreve.
Risca o que escreveu.
Rabisca.
Desenha palavras.
Triângulos. Uma casa de criança.
O telhado. Um lápis com cabeça de Pinóquio.
Vai até o final da margem direita.
Volta para a esquerda.
A pena arranha o papel.
A manga do casaco de lã atrapalha
o movimento da mão direita.
Traga o cigarro sem tirar os olhos da folha.
Pronuncia as palavras que escreve.
Ao riscá-las fica calado.
Os lábios secos colam no filtro do cigarro.
Escreve seis frases ininterruptas.
Morde a caneta.
Pensa.
Risca duas.
A fumaça ascende.
Olha a janela por cima dos óculos.
Volta ao papel.
Desenha estrelas de muitas pontas.
Um barco à vela. A baía.
O barco saindo da baía.
Abre a gaveta.
Remexe cartas de baralho.
Procura mais no fundo.
Os dedos reconhecem a empunhadura.
Seu rosto recua.
Esse movimento não estava no roteiro.
O diretor não pede para repetir a cena.
Ele aproxima a pistola do rosto.
Os óculos firmes no nariz.
A pistola é o primeiro plano.
Ele não está mais ali.
Dura cinco segundos.
Um carro buzina na rua.
Ele vai até a janela.
Ele afasta a cortina.
O carro já passou.
Ele fecha a cortina.
Alguém bate à porta.
A mulher de branco o chama para a ceia.
Ele apaga a luz.
Ele fecha a porta do quarto.
Ele não lembra o nome do filme.