5.2.15

O nervo de todas as coisas





Você está me roubando que eu sei. Vejo tudo da minha janela enquanto o velho fedorento não vem vejo tudo da minha janela. O peito lançado no parapeito vejo a olho nu.  Você me rouba descaradamente. A distância entre nós é imensa mas meus olhos são precisos. Se de onde estou eu vi o Empress of Ireland ser engolfado pela neblina e naufragar no Saint Lawrence, você deve imaginar que ver você me roubando é um microscópio. Sua carcaça parece estar dentro do meu olho. Você deve estar precisando muito para me roubar em plena luz do dia. Olhe este sol. Olhe as pessoas se dirigindo para a praia. Hoje temos ondas de mais de 2 metros e ninguém se arriscará neste mar, o que você deveria fazer também e parar de me roubar. Ainda não contei a ninguém de sua ladroagem, mantenho em segredo porque espero que você receba meus sinais telepáticos de que isso que está fazendo é ilegal e me ofende antes de tudo. Essa aí é a sua mãe lhe trazendo um cafezinho. Há muito tempo eu lhe observo e sei que essa aí é a sua mãe. Uma coitada. Ignora que você está me roubando enquanto sorve do seu cafezinho ralo. Da minha janela vejo o seu vizinho andando nu pelo apartamento. Ele não está me roubando. Vejo a vizinha de baixo escovando o cachorro. O cachorro não está me roubando. Aqui nesta rua não tem ninguém me roubando, só você. Claro que em algum lugar desta cidade há alguém me roubando, alguém roubando alguém. Mas o que me interessa é você. Sua xícara esvaziou e você olha para os lados. Procura alguma coisa. Eu sei o que procura. Não vai encontrar porque ainda a trago comigo. O nervo de todas as coisas. O que você não tem. Sua natureza não tem. Eu demorei a ter. Tive de esquecer o velho fedorento e vasculhar a minha alma com um forcado. Mas achei. Muito, não tudo. E esse velho. Você conhece o meu velho. O que anda de mictório em mictório como se fizesse a Via Sacra. Você procura em todas as gavetas e não acha. As gavetas são o centro do meu universo, mas não há nada de mim nas suas. Por isso você está me roubando. Não vejo sinais de que você está me captando. Parece que falo uma língua esquimó. Jesus Nazareno, Rei dos Judeus, o velho fedorento entrou no meu prédio. São seis andares até aqui e você ainda está me roubando. Cartago será destruída. Cada andar leva 20 segundos. Vou trancar as portas. Trancar tudo. Todas as letras do alfabeto. Reforçar as fronteiras. Enviar meus soldados para o início da linha. Desde Ptolomeu homens e animais só olham na direção do início da linha. Vou me trancar no armário e esperar a tormenta passar. O homem com o cajado. Vou me trancar com meu rolo de papel amarrado com barbante. Você não vai mais me roubar. Dentro do meu esconderijo bem fechado, meu país entre rios, farei inscrições em lápides. Você é covarde. Não irá me roubar até aqui. Quando dois escrevem a mesma coisa, não é a mesma coisa.