2.1.18

Pele




A pele começou a apodrecer. Começa pela pele.

Vá cuidar da sua vida.

Os dois filhos discutiam na sala. Faria aquele tratamento de friccionar diamantes e rubis na cara para rejuvenescer e colocaria na conta deles. Isso sim. Não, faria o do veneno de abelha, mais caro ainda. Claro que as noras iriam sugerir o de enzimas de titica de passarinho, mais barato. Vou deserdar a todos. Deixar na miséria. Pedindo emprego em redes sociais, porque lá ninguém os conhece como eu sei bem a boa bisca que são. Os dois só sabem falar da merda dos negócios. No almoço, no jantar a merda dos negócios, de troca de carro, uma oportunidade imobiliária, parcerias vencedoras, assertividade, multidisciplinaridade, iates Numarine. Conversa cacete. Acho que comecei a apodrecer quando os pari. Poderia tê-los despejado no balde, mas temia a Deus e fodia desembestada. Uma hora pega. Uma hora não dá mais para extirpar sem estorvar a saúde. Ter filhos aumenta a expectativa de vida, os hormônios vão no pico e é só bem-estar. Eu li isso e, indolente, dei fé. Hoje estou assim. Filhos, noras, netos e ganhando de presente trivialidades de cozinha, abraços moles de sovacos perfumados com meus vinténs. Todo mês, sem falta. Na conta dos dois. Nem se parecem em nada comigo. Começa pela pele. Que arrepia quando entram na minha casa e tiro da geladeira um sorriso apaziguador de mãe. Vão sair de férias e deixar os pósteros comigo. Que nem se parecem com eles. Um mês de gritos e cheiro de baba de adolescente. Peidando McDonald’s. Jogando videogame. Toalhas molhadas. Tênis pestilentos. Secando meu uísque. Nem olham na minha cara. Uma bênção, penso antes de dormir. Os pés quentes na areia. A criança que fui tinha amigos imaginários, nunca ficava só. Com o tempo foram todos desaparecendo. Não lhes dei um final. Ficaram parados lá no canto enquanto eu vivia. Hoje todos voltaram e estão aqui comigo. Chegaram num navio. Vozes moças. Gestos lentos. Faço perguntas, dou as respostas. Trocamos impressões. São transparentes e fico feliz porque também não me veem. E à minha pele que apodrece. Sugerem um escritório que trata de testamentos.  Um advogado da época dos meus pais. Deve estar morto, mas agradeço mesmo assim a indicação. Não sou eu que falarei do tempo. Das novas fronteiras. Eles não entendem por que uma criança precisaria de um testamenteiro. Digo que é para o meu avô. Fernando reclinado na cama assobiando baixinho ao meu lado e sinto um vazio no peito. Ele era alto, bronzeado, pecunioso, sabedor e cercado de mulheres apaixonadas. Mas só amava uma. A minha melhor amiga no colégio. Laura. Fernando, vestido com o melhor terno do meu pai, olhava para ela e o vento entrava pela casa. Cicatrizava. Laura. Análise combinatória, pirâmides, cones e esferas. Por onde andaria. Dentro de mim, ele não soube responder. Ela não estava mais ali comigo. Como nunca esteve. Sensação quieta de passar.