E se eu quiser sair da jaula do outono já na primavera? Tomei uma caixa inteira de diazepam veterinário com uma quartilha de água sanitária. Só o que senti foi leve sonolência e uma impetuosa dor de estômago. Para amenizar a forte azia, comi um côvado de bolo de chocolate meio dormido meio acordando. O médico disse que foi o bolo que me salvou. Há farinhas milagrosas. Perguntei a ele o que me fez mal de fato, se o alvejante ou o diazepam vet. Não soube responder. Ou não quis. Ficou balançando a cabeça com um sorrisinho irônico na boca torta. Burro. Eu disse a ele que se não me respondesse, eu não pagaria a consulta. Que consulta? Isso aqui é o pronto-socorro de um hospital público. Não satisfeito com o quod erat demonstrandum de sua burreza, ainda atira minhas penúrias na minha cara. Ninguém salva a vida de ninguém de graça. Essa conta iria chegar. Ele não deve é saber no que se transforma a fusão de hipoclorito de sódio com GABA que de nada serviu aos meus propósitos. E ainda pôs a culpa no bolo, o infeliz do bolo que era só para aliviar o estômago mas resolveu se meter em problemas que não lhe diziam respeito salvando a minha vida. "Farinhas milagrosas." É para isso que servem os cursos de medicina. Meu ódio e frustração foram tantos que meu desejo de dar cabo da existência finou-se antes de mim. Transformou-se em um impulso repentino e generalizador de vingança. Contra fabricantes de bolo, de calmantes veterinários, de diplomas e de todo tipo de lixívia. No entanto, pensando bem três meses depois de planos mirabolantes de homicídio em massa, eu não iria me descabelar por ruas e becos escuros atrás de ninguém. Risquei mentalmente minha fórmula capenga e pesquisei outros estratagemas. Nada de finalizadores inapeláveis: armas de fogo, asfixias ou prédios altos. Eu daria trabalho ao Dr. Farinha. Deixei seu nome e endereço na cabeceira com instruções expressas a amigos zelosos e enxeridos. Estava louca para ouvir seus próximos diagnósticos inteligentes, mesmo que porventura impossibilitada por uma colateral surdez tóxica. Teríamos de gritar um com o outro na emergência lotada de espectadores. Seria um frêmito divertido. Mamãe tinha dolorosa paixão por óperas.
28.6.18
22.6.18
Meu país é a minha cabeça
18.6.18
Repoema
- Há dentro de mim uma paisagem
entre meio-dia e duas horas da tarde.
Meu coração bate desamparado
onde minhas pernas se juntam.
Uma noite me dei conta de que possuía uma história
e de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes,
modos de voz e gesto repetindo-se.
O que existe são coisas, não palavras.
Granito, lápide, crepe
nuvem, saudades, lembranças.
Em todo enterro choro com um olho só,
com o outro acho coisas no meu sonho:
os toquinhos de vela crepitam e morrem.
Quando eu sofria dos nervos
fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento,
não valeu.
De dentro da geometria
Deus me olha e me causa terror.
As formigas passeiam na parede, sobre
a cômoda, num quarto
Elas querem me matar, me comer, me cagar.
Eu sei escrever.
Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras
Assim escrevo: tarde. Não a palavra.
A coisa.
[Repoema que fiz a partir de versos isolados de várias poesias de Adélia Prado publicadas em seu Poesias reunidas.]
De quem sabe o que quer
Jogo um pouco de água no rosto.
Escorre pela folha central.
Uma perfeição.
Esta flor branca em minha pele é a lepra
de quem sabe o que quer.
15.6.18
O meu erro
Não me excitam as de unhas compridas.
Nunca.
Sei que a qualquer momento
vão raspar outra vez no meu caderno
a maior delas para sublinhar o meu erro.
Eu me levanto e entro.
A quinta-feira
mora perto.
Não há testemunhas.
2.6.18
1.6.18
Paraísos artificiais a seco
Sobrou alguma coisa para morrer?
Quando é que as pessoas não falam de si mesmas? Soube que inventaram até umas redes para ficarem falando ainda mais e mais à distância, sem que ninguém lhes perguntasse porra nenhuma, que inferno. Milhares de rostos banais num só dia rebocados por um caminhão guincho sem freios. Por que não param agora e vão dormir? Idiotas do caralho. Aqui onde estou é a mesma merda. Pior, não tem vinho nem hipódromo. São paraísos artificiais a seco. Parece uma sala. O ventre leitoso de uma aranha. Parece um poeta vazio. Uma nota de 20 dólares. Um clipe de papel. Nada sobrou para me comerem. Minha alma é de algodão e unha do pé.
(mensagem do velho Buk que psicografei entre uma dose e outra de Benadryl)
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