18.6.18

Repoema

  1. Há dentro de mim uma paisagem 
    entre meio-dia e duas horas da tarde. 
    Meu coração bate desamparado 
    onde minhas pernas se juntam. 
    Uma noite me dei conta de que possuía uma história 
    e de que era monótona com sua fieira de lábios, narizes, 
    modos de voz e gesto repetindo-se. 
    O que existe são coisas, não palavras. 
    Granito, lápide, crepe 
    nuvem, saudades, lembranças. 
    Em todo enterro choro com um olho só, 
    com o outro acho coisas no meu sonho: 
    os toquinhos de vela crepitam e morrem. 
    Quando eu sofria dos nervos 
    fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento, 
    não valeu. 
    De dentro da geometria 
    Deus me olha e me causa terror. 
    As formigas passeiam na parede, sobre 
    a cômoda, num quarto 
    Elas querem me matar, me comer, me cagar. 
    Eu sei escrever. 
    Escrevo cartas, bilhetes, listas de compras 
    Assim escrevo: tarde. Não a palavra. 
    A coisa. 

    [Repoema que fiz a partir de versos isolados de várias poesias de Adélia Prado publicadas em seu Poesias reunidas.]