31.7.18

Cimento fresco






Descreveu uma brotoeja em 37 páginas 
intercalando com interpretações catatônicas de sonhos. 
Enquanto eu lia o livro, 
ia formando outra história na minha cabeça. 
Eu estava diante de mim e me olhava. 
À minha sobrevivência. 
No meio de um diálogo revelador sem uma palavra, 
minha trama particular -- 
cheia de atrocidades e certa bondade -- 
deu uma guinada surpreendente 
e tive um êxtase inesperado 
sem precisar tocar-me sob cobertas brancas. 

O autor ficou lá, 

sozinho e parado com sua brotoeja 
espiando o pátio de cimento fresco.






30.7.18

Please





Please
   Morther Me









24.7.18

Dulces dolencias




Dulces dolencias

Yo me azoto con los peores sufrimientos, 
pero es Consuelo que escribe los poemas.









10.7.18

Marítima






Eu precisava da pressão do que parecia um saco de cimento para recuar o martelo e disparar. Estava magra, sem tônus, trêmula, mal erguia uma expressão no rosto. Mãos espectrais, de algas e música, de roçar leve pálpebras e apertar cordas de ar. Meu cabelo fazia peso no pescoço. Ambígua, como entreolhares de família, de conhecidos de circunstância. Escrevo a lápis. Aponto-o com canivete afiado -- anoto -- risco -- discordo -- estou exausta. Comprei a Sig há seis meses de um funcionário do fórum local. O amigo indicou-me o homem. Encontrei-o num shopping e ele me passou a encomenda dentro de uma caixa de tênis. Uma marca que nunca usei. A Sig também me era inédita. Imaginei-a menos pesada. Era antiga mas bem conservada. Confiei. Paguei o dobro do que ganhava em um mês. Não engastou direito em minha mão. Insisti. À noite não lia mais. Namorava a arma. Dormia, meus olhos se desfocando lentamente da Sig para os sonhos. Melhor que barbitúricos, orgasmo pontifício. Eu ia matar meu egoísmo. Caçá-lo em A B C e outros latentes. A vontade de matar me ama mais do que as outras. E no entanto sou fraca. Não correspondo a esse amor. Me encolho. Impotente. Contagiosa a mim mesma. Envolta na doença do espaço. Sem peso. O peso de pedir a alguém que o fizesse. Um morto não incomoda ninguém porque está só metade descoberto, a metade da memória. N. traz na cabeça um sombrero. Atravesso a praia de norte a sul e enterro a arma na areia, na posição certa para o disparo já tantas vezes testada. Cubro com toalha. N. acena de longe. N. de ânimo gentil. Tudo ignora. Apressa-se porque ama. De perto, olhando-nos, nos sentamos em cima da toalha. Todo cadeado tem seu lugar no peito. Em poucas palavras de como cato palavras, conchas e continhas sem qualquer utilidade, eu poderia revelar-lhe -- árvores, pássaros, sentimentos na madeira original. Emudeço como sei, marítima. Há muito tempo é noite. N. ergue o odre de couro e me oferece da água mais fresca e pura. A água me desce como se de tudo soubesse. Deito devagar e aliso a toalha. Puxo N. para mim e seu peso inteiro despenca no meu corpo. Imobilização e queda. É a pressão de que preciso.

Corre.

 







5.7.18

Um desembarque na Normandia





Um desembarque na Normandia. Aqui. Um porta-aviões gigantesco e moderno  à esquerda com naves de combate ao lado fechando toda a baía e se aproximando. Eu estava na praia a uma certa distância, de frente, vendo tudo acontecer. Uma bela e assustadora cena de filme. Cores fortes puxando para o verde-escuro meio fora de foco, uma pintura, o porta-aviões se destacando de tudo a sua volta. Corri para dar o alarme. Todos começaram a gritar de pavor. Uma invasão militar. Voltando ao meu posto de observação, vi caminhões blindados cor de areia estacionando e abrindo suas portas laterais. Dentro, penduradas em cabides, várias camisetas cáqui com estampas esverdeadas dos Rolling Stones. Diferentes de tudo que já vi. De um tecido estranho, mais rijo. Não era uma invasão afinal. Pelo menos não militar. Fui até o caminhão para ver aquelas camisetas que chamaram tanto minha atenção. De perto, não eram a mesma coisa. Eram camisetas vagabundas. Esbeiçadas. Os vendedores eram arrogantes e grosseiros, como costumam ser os de butiques finas. Fui reclamar com a funcionária do caixa que não me deu a menor atenção. Baixei o tom para um marxismo adágio em sol menor e disse que entendia por que eles eram assim, por serem mal pagos, explorados e sinônimos. Ela sorriu confirmando e tudo ficou bem. Corte. Anotei para não esquecer o sonho. Não havia trilha sonora. 
Quarta-feira.





1.7.18

L'hora grisa




Querido maço vazio
Não sei se te amasso, jogo longe e converto, 
ou desenredo em pedaços e enterro. 
Posso fazer uma bolinha. Brincar de futebol com meu gato. 
Ele até gosta. Lagartixas nem conversam mais.
Maço querido e oneroso, quantas horas/dias de vida me roubaste? 
E entregaste a quem? Já de nada te servem se estás acabado, bocó. 
Fiz uma poesia fumando teus filhos. 
Ouvi um Mompou inteiro queimando os miúdos um por um. 
Não é culpa minha. É o vento que arrasta.
Pensei muitas coisas durante essa névoa enferma e paterna. 
Olhava pela janela e os expulsava pela boca, 
como da sala a professora cansada para quem 
as crianças são velhas e não lhe fazem mais rir. 
Depois. 
Depois uma coisa. 
Acendi um errado pela cabeça. 
Ele gritou, ah se gritou. Tirou-me o sono. 
A saia engomada.

Amanhã estarei na venda. Renovado, me receberás — 
Sentaremos no pequeno balcão um junto do outro.
Apertados.
Sufocados. 
Amantes. 
Capa e miolo.