16.10.12

O Canal
























Ela saiu de novo.
A velocidade dela aumenta quando está mais próxima do sol.
O que é isso?
Kepler. Sonhei com ele esta noite.
Os corpos celestes se movimentam demais pro meu gosto.
Não se preocupe, ela volta.
Você continua frequentando a sua rue de Lille?
Sim, eu não paro de me escrever.
Mudou o estilo pelo menos?
Que ranzinza hoje, não?
Rabiscos, tudo não passa de rabiscos.
Você tem de parar de vigiar essa mulher.
Minha janela dá para o Canal.
E você não sai dela. Fica coagulando água aí.
Ela passa todos os dias, todas as horas,
daqui sou capaz de ver até os ossos.
Que não são poucos. Um alinhamento de canhões.
Têm música pelos lados.
Você devia dormir mais.
É pior.
Até este Canal imundo tem duas saídas para o mar.
É. Onde trombam as águas.
Há quanto tempo ela saiu?
Umas duas horas.
Costuma demorar?
Às vezes. Pela manhã volta mais rápido.
Pretende falar com ela?
Não sei. Acho que não. Nunca direi.
E por quê?  Eu vejo tudo e calo?
Se falar, deixo de pensar.
Se falar, pensará outras coisas.
Já faço isso sem precisar falar com ninguém.
Eu não saberia viver assim.
Você é uma criança que precisa tocar as coisas.
É perigoso não entender o que acontece,
palavras são meio caminho andado.
Palavras são notícias. Não dizem pernas, braços, 
pele, nariz, ombro, orelhas, carne, sangue.
Da mulher do Canal?
Não, do meu corpo. 
Você precisa comer. Está magra demais.
Eu não me moveria se algo não me arrastasse.
Gilbert?
Napoleão, sob a cúpula dos Inválidos.
Precisa de dinheiro?
Não. Me traga um descongestionante nasal.
Ok. Tenho de ir agora.
Está bem.
Fecho a porta?
Sim, por favor.
Até logo então.
Até.