25.12.13

Amor de mãe



Querida mãe


Como chove. Espero a chuva passar para lhe comprar meus presentinhos de Natal. Não esquecerei das suas vacas, mamãe. Elas também são filhas do Altíssimo. Mas como o dinheiro anda curto, meus regalos a todas não passarão de 2,99. Não esqueci da sua roçadeira, mas por enquanto acho que só poderei lhe dar um ancinho. Não vejo a hora de poder abraçá-la neste Natal. Ainda não entendo por que a senhora precisa morar tão longe dos seus filhos e netos. Nessa casa tão fria e solitária. A vovó, que Deus a tenha, deve achar que não cuidamos da senhora. Pena que não possa morar conosco, a senhora sabe que aqui é tão pequeno. Não cabe mais uma cama, que dizer vacas. Falando nisso, o Aliomar manda beijos, os meninos também. Na verdade o Norinho está febril há dias e acho que não passaremos o Natal com a senhora. É tão triste isso, nossa família desunida nesta data tão bonita. Eu mesma me sinto fraca sem meus biotônicos. Afora isso, temos muita saudade e lhe desejamos um Feliz Natal. Da sua filha que te ama

Odete









Laura, minha filha, a roçadeira eu já comprei. Deixe o espírito da sua vó em paz que onde ela está já não acha mais nada. E não se preocupe comigo: eu odeio Natal. As vacas estão bem e desejam a todos um Feliz Natal.

P.S. Tem notícias da Odete, aquela vagabunda da sua irmã?

Com amor da sua mãe





24.12.13

Pasolini






  Sexo, consolo da miséria!


Sexo, consolo da miséria!
A puta é a soberana, seu trono,
uma ruína, sua terra, um pedaço
gramado de merda, seu cetro,
uma bolsinha de verniz vermelha:
uivando pela noite, suja e feroz
como as mães do passado,
ela defende seus domínios e sua vida.
Os cafetões sempre por perto,
inchados e abatidos com seus bigodes
brindisinos ou eslavos, são
os chefes, os regentes: combinam
no escuro o preço de cem liras,
piscando em silêncio, trocando
palavras secretas: o mundo, excluído, cala-se
diante dos que o excluíram,
carcaças silenciosas de aves de rapina.


Mas do lixo do mundo, nasce
um novo mundo: nascem novas leis
onde não há mais lei, nasce uma nova
honra onde a honra está na desonra ...
Nascem o poder e a nobreza,
ferozes, no amontoado de casebres,
nos lugares sem fim onde achamos que
que a cidade termina, mas é onde
recomeça, inimiga, recomeça
milhares de vezes, com pontes
e labirintos, fundações e escavações,
atrás de uma tempestade de arranha-céus
cobrindo horizontes inteiros.


Na facilidade do amor
o miserável se sente homem:
constrói sua fé na vida
e despreza quem vive diferente.
Os filhos se lançam na aventura,
seguros de estar em um mundo
que os teme e ao seu sexo.
Sua piedade está em serem impiedosos,
sua força, na leveza,
sua esperança, em não haver esperança.


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("Sesso, consolazione della miseria!", trad. Maira Parula, dez. 2013.)







18.12.13

3 poemas de Hemingway




Junto com a juventude

A pele de porco-espinho,
dura e mal curtida,
isto deve ter acabado em algum lugar.
A coruja-da-virgínia empalhada,
pomposa,
de olhos amarelos;
Uma viuvinha num galho torto
coberta de pó.
As pilhas de revistas velhas,
as gavetas com as cartas do garoto
e o verso de amor
devem ter acabado em algum lugar.
O Tribune de ontem foi-se embora
junto com a juventude
e a canoa em pedaços na praia
no ano do grande temporal
quando o hotel pegou fogo
em Seney, Michigan.


Montparnasse

Nunca há suicídios de pessoas que conhecemos no nosso quarteirão
    Suicídios que deram certo;
    Um garoto chinês se mata e morto fica.
    (e continuam colocando sua correspondência na caixa postal)
    Um garoto norueguês se mata e morto fica.
     (ninguém sabe onde o outro garoto norueguês foi parar)
     Uma modelo é encontrada morta
     sozinha na cama e morta fica.
     (o que deu um trabalho quase insuportável ao concierge)
     Azeite de oliva, clara de ovos, mostarda e água, espuma de sabão
     e sonda estomacal salvam as pessoas que conhecemos.
     Todas as tardes podemos encontrar alguém que se conhece num café.



Conselhos a um filho

Nunca confie em um homem branco,
Nunca mate um judeu,
Nunca assine um contrato,
Nunca alugue um banco na igreja.
Não se aliste no exército,
Nem se case com muitas mulheres,
Nunca escreva para revistas,
Nem coce sua urticária.
Sempre cubra o vaso com papel,
Não acredite em guerras,
Mantenha-se limpo e arrumado,
Nunca se case com prostitutas.
Nunca pague um chantagista,
Nunca processe ninguém,
Nunca confie em um editor,
Ou você vai dormir na palha.
Todos os seus amigos vão te deixar
Todos os seus amigos vão morrer
Então, leve uma vida limpa e saudável
E se junte a eles no céu.



(Tradução de Maira Parula, dez. 2013)


17.12.13

Dostoiévski para infantes

Notas de um Tatu

Eu sou doente. Eu sou mau. Sou rancoroso e repulsivo. Ao diabo subterrâneos e subsolos. Acho que humanos também são doentes. Eu os conheço bem, eu sou um tatu. É por baixo que se conhece tudo melhor. Mas não vou falar dos homens. Um tatu decente só fala de si mesmo. Tenho o fígado ruim. Como se carregasse todos os fígados do mundo. Pouco importa. Eu tenho língua. Garras afiadas. E com elas me entendo bem. Não preciso de veterinários. Não poderia pagá-los. E baba não engorda poupanças. Sou da família Dasipodídeos, origem grega. Invadimos a África. Depois as Américas. Vejo gente de longe. E até do meu buraco gente é o que de mais burro existe, além de minhoca, larva e mandioca. Não me amarguro por não ter dentes na frente. Os de trás me servem ao gosto. Meu propósito na vida é usá-los para moer o que quer que seja. Cupins de uma rabeca, monumentos históricos, xícaras de chá com açúcar, o baço insepulto de cavalheiros, damas e sacerdotes católicos. Triturar o consciente e o inconsciente. Cordões umbilicais jogados no lixo. Segredos das bonecas sujas de crianças rotas. Em Portugal chamam-me armadilho. Prefiro. Tatu é tupi. Tupi é tatu. Como me distinguir? Dasipodídeos quer dizer pés peludos. Assusta. Não o suficiente, pois no dia em que me dizimarem, os humanos sufocarão numa nuvem de insetos e o mal de Lázaro varrerá a terra. Subterrâneos e subsolos. Não haverá tempo para remorsos ou vergonha. A toca teria de ser muito grande. Já no meu buraco cabe só eu. Recebo visitas, mas toco todos dali depois do acasalamento. Aglomeração me dá convulsões. Uma falta de ar convicta. Visito outros buracos quando me convocam pelo cheiro ou assobiam de madrugada. Como dizem os homens, tenho uma aeromoça em cada porto, acho que foi assim que meu avô me contou. Vô Dasi nasceu no Marrocos e se entocava no porão do Rick's, um pardieiro de bêbados clandestinos. Quando começou a comer passaportes falsos, o dono tocou nossa família de lá a pontapés e concretou nosso buraco. O tal de Rick acabou virando herói de uma peça jamais encenada. Imigrante na América, meu avô nos contaria isso entre outras coisas muito tempo depois, ele e sua mania de conviver com humanos que jogam sueca. A família sempre nos ensina alguma coisa quando não nos destrói por completo. Não sei quantos anos tenho. Tudo me parece como da primeira vez. Aprendi com os tatus russos que viver demais é falta de educação. Conheci alguns deles quando morei no México. Davam-me pena. A vida é muito cara em São Petersburgo, viviam dizendo. Uns avarentos. Não sei qual a diferença entre um besouro russo e um besouro mexicano, se é isso que eles passavam o dia comendo e não rublos. Tatu que se preze tem nojo de dinheiro. Alimenta-se de histórias e humanidade. De momentos propícios para roê-las, mesmo que se sinta a cada dia mais pesado. E um dia os caridosos de bodas e batizados hão de querer salvar a nossa espécie porque somos importantes para o ecossistema. E conseguirão. Tomarão um copo de leite quente antes de dormir, apaziguados. Eu ainda estarei no meu buraco. No porão, no sótão, na garagem. Subindo as escadas. Livre de subterrâneos e subsolos. Entrarei no quarto e me esconderei nos seus sapatos. A felicidade me subindo do coração à garganta, tilintando seus talheres.



maira

13.12.13

prova de ternura


O corpo sobre a mesa
me diz que posso vomitar
ou pensamentos de morte pensar
fico remando
de uma coisa a outra
o doutor com mãos perfeitas
ia cortando e enchendo travessas
lembrava uma namorada que tive
chegando em casa com o sangue
ainda quente num saco plástico
seu frango ao molho pardo
era uma prova de ternura