Notas de um Tatu
Eu sou doente. Eu sou mau. Sou rancoroso e repulsivo. Ao diabo subterrâneos e subsolos. Acho que humanos também são doentes. Eu os conheço bem, eu sou um tatu. É por baixo que se conhece tudo melhor. Mas não vou falar dos homens. Um tatu decente só fala de si mesmo. Tenho o fígado ruim. Como se carregasse todos os fígados do mundo. Pouco importa. Eu tenho língua. Garras afiadas. E com elas me entendo bem. Não preciso de veterinários. Não poderia pagá-los. E baba não engorda poupanças. Sou da família Dasipodídeos, origem grega. Invadimos a África. Depois as Américas. Vejo gente de longe. E até do meu buraco gente é o que de mais burro existe, além de minhoca, larva e mandioca. Não me amarguro por não ter dentes na frente. Os de trás me servem ao gosto. Meu propósito na vida é usá-los para moer o que quer que seja. Cupins de uma rabeca, monumentos históricos, xícaras de chá com açúcar, o baço insepulto de cavalheiros, damas e sacerdotes católicos. Triturar o consciente e o inconsciente. Cordões umbilicais jogados no lixo. Segredos das bonecas sujas de crianças rotas. Em Portugal chamam-me armadilho. Prefiro. Tatu é tupi. Tupi é tatu. Como me distinguir? Dasipodídeos quer dizer pés peludos. Assusta. Não o suficiente, pois no dia em que me dizimarem, os humanos sufocarão numa nuvem de insetos e o mal de Lázaro varrerá a terra. Subterrâneos e subsolos. Não haverá tempo para remorsos ou vergonha. A toca teria de ser muito grande. Já no meu buraco cabe só eu. Recebo visitas, mas toco todos dali depois do acasalamento. Aglomeração me dá convulsões. Uma falta de ar convicta. Visito outros buracos quando me convocam pelo cheiro ou assobiam de madrugada. Como dizem os homens, tenho uma aeromoça em cada porto, acho que foi assim que meu avô me contou. Vô Dasi nasceu no Marrocos e se entocava no porão do Rick's, um pardieiro de bêbados clandestinos. Quando começou a comer passaportes falsos, o dono tocou nossa família de lá a pontapés e concretou nosso buraco. O tal de Rick acabou virando herói de uma peça jamais encenada. Imigrante na América, meu avô nos contaria isso entre outras coisas muito tempo depois, ele e sua mania de conviver com humanos que jogam sueca. A família sempre nos ensina alguma coisa quando não nos destrói por completo. Não sei quantos anos tenho. Tudo me parece como da primeira vez. Aprendi com os tatus russos que viver demais é falta de educação. Conheci alguns deles quando morei no México. Davam-me pena. A vida é muito cara em São Petersburgo, viviam dizendo. Uns avarentos. Não sei qual a diferença entre um besouro russo e um besouro mexicano, se é isso que eles passavam o dia comendo e não rublos. Tatu que se preze tem nojo de dinheiro. Alimenta-se de histórias e humanidade. De momentos propícios para roê-las, mesmo que se sinta a cada dia mais pesado. E um dia os caridosos de bodas e batizados hão de querer salvar a nossa espécie porque somos importantes para o ecossistema. E conseguirão. Tomarão um copo de leite quente antes de dormir, apaziguados. Eu ainda estarei no meu buraco. No porão, no sótão, na garagem. Subindo as escadas. Livre de subterrâneos e subsolos. Entrarei no quarto e me esconderei nos seus sapatos. A felicidade me subindo do coração à garganta, tilintando seus talheres.
maira