6.3.15

A Pôem






Você se lembra do Arnaldo? 

Aquele que tinha um barzinho onde toda gente usava chinelinho descontraído. Daí arrepiávamos e íamos correndo no seu carrão preto para um armazém da avenida Brasil. 

Lembra de você me coçando as costas quando eu alucinava estar deitada nas urtigas das Highlands? 

Você até hoje não reparou que sou mulher. 

Na hora do almoço, ele tem mania de lavar a comida. Não é colocar tudo em pratos limpos não senhor,  é lavar a comida mesmo, com água e sabão. Nunca vi isso. Espero estar olhando para a pessoa certa. O meu mestre. O Livro. 

Um baita pernilongo amassado cai de repente em cima da frase "um recente inquérito", justamente num artigo sobre peçonhas e lugares. 

Estou divagando num lótus completo. A ponta da língua atrás dos dentes superiores. Meus lábios cerrados num sorriso muito sutil. A ideia é meditar, mas divago. Não há sonolência possível com este chão frio. 

Não tem ninguém aqui. O templo está vazio. 

São bonitas as pedras hexagonais do piso, mas poderiam ter polido. Sinto a bunda dormente, a pele ralar. Se essa dormência na bunda servir para canalizar minha energia a centros mais elevados, Shakyamuni não tem do que reclamar.

Uma ave de agouro guia minha mão. 

Este templo já foi hospício. Acompanhei as obras de perto. Fiz questão. Nada foi derrubado. Trocaram as paredes de lado, os banheiros se mudaram para a ala esquerda, o quarto-forte hoje é uma sala de ikebana. 

Minha bunda é um subpronome do caso reto. Dou uma gargalhada sutil. Faz eco. É o prajña. 

Eu queria tanto me deitar nos trilhos com espuma de memória da Imperatriz Leopoldina. Estou dolorida. 

Passo para meio-lótus. 

Arnaldo me deu uma carona para o templo. Ele não dirige mais com chinelinhos descontraídos. Vendeu o bar e fez direito. Advocacia, quero dizer. Passa o dia no fórum do Antônio Carlos, me disse. Esse Antônio Carlos eu não conheci, não é do meu tempo. Avenida Antônio Carlos! Arnaldo está nervoso. Devia passar uns dias comigo no templo para dormitar a bunda. Fincar suas raízes na Índia. Mas sei que não é todo mundo que oferenda a bunda ao mestre. É difícil, concordo. As pedras hexagonais não são polidas. A comida é lavada. A meditação leva uns trinta anos liliputianos. E Arnaldo é do tipo que ajuda mais a si próprio do que aos outros. É o que o mestre chama de hinaiana, que significa veículo pequeno. O carro dele é pequeno mesmo. Um benjoim. Uma lata. Saí com dor nas pernas. Hare Rama. 

Passo para a posição birmanesa. 

Sinto um pouco de alívio nas nádegas. Redobro minhas esperanças. Acho que a meditação pode chegar a qualquer hora. O meu mestre não apareceu hoje. Gosto de ver aquela cara dele em estado de graça. Ele senta reto nas pedras e rala mesmo. Não sente dor, como se o traseiro estivesse em Porto do Capim. Ai de mim. Sou uma iniciante, preciso aprender muito com ele. A vida é feita dessas precárias alegrias. Arnaldo.