Você se lembra do Arnaldo?
Aquele que tinha um barzinho onde toda gente usava chinelinho descontraído. Daí arrepiávamos e íamos correndo no seu carrão preto para um armazém da avenida Brasil.
Aquele que tinha um barzinho onde toda gente usava chinelinho descontraído. Daí arrepiávamos e íamos correndo no seu carrão preto para um armazém da avenida Brasil.
Lembra de você me coçando as costas quando eu alucinava estar
deitada nas urtigas das Highlands?
Você até hoje não reparou que sou
mulher.
Na hora do almoço, ele tem mania de lavar a comida. Não é
colocar tudo em pratos limpos não senhor, é lavar a comida mesmo, com
água e sabão. Nunca vi isso. Espero estar olhando para a pessoa
certa. O meu mestre. O Livro.
Um baita pernilongo amassado cai de
repente em cima da frase "um recente inquérito", justamente
num artigo sobre peçonhas e lugares.
Estou divagando num lótus completo. A
ponta da língua atrás dos dentes superiores. Meus lábios cerrados num sorriso
muito sutil. A ideia é meditar, mas divago. Não há sonolência possível com este
chão frio.
Não tem ninguém aqui. O templo está vazio.
São bonitas as pedras
hexagonais do piso, mas poderiam ter polido. Sinto a bunda dormente, a pele
ralar. Se essa dormência na bunda servir para canalizar minha energia a centros
mais elevados, Shakyamuni não tem do que reclamar.
Uma ave de agouro guia minha
mão.
Este templo já foi hospício. Acompanhei as obras de perto. Fiz questão.
Nada foi derrubado. Trocaram as paredes de lado, os banheiros se mudaram para a
ala esquerda, o quarto-forte hoje é uma sala de ikebana.
Minha bunda é um
subpronome do caso reto. Dou uma gargalhada sutil. Faz eco. É o prajña.
Eu
queria tanto me deitar nos trilhos com espuma de memória da Imperatriz Leopoldina.
Estou dolorida.
Passo para meio-lótus.
Arnaldo me deu uma carona para o templo.
Ele não dirige mais com chinelinhos descontraídos. Vendeu o bar e fez direito.
Advocacia, quero dizer. Passa o dia todo no fórum do Antônio Carlos, disse-me assim. Esse
Antônio Carlos eu não conheci, não é do meu tempo, comentei sem interesse, olhando as palmeiras lá fora. Avenida Antônio Carlos, animal!
Arnaldo está nervoso. Devia passar uns dias comigo no templo para dormitar a
bunda. Fincar suas raízes na Índia profunda. Mas sei que não é todo mundo que oferenda a
bunda ao mestre. É difícil, concordo. As pedras hexagonais não são polidas. A
comida é lavada. A meditação leva uns trinta anos liliputianos. E Arnaldo é do
tipo que ajuda mais a si próprio do que aos outros. É o que o mestre chama de
hinaiana, que significa veículo pequeno. O carro dele hoje é pequeno mesmo. Um
benjoim. Uma lata. Saí com dor nas pernas. Hare Rama.
Passo para a posição
birmanesa.
Sinto um pouco de alívio nas nádegas. Redobro minhas esperanças. Acho
que a meditação pode chegar a qualquer hora. O meu mestre não apareceu hoje.
Gosto de ver aquela cara dele em estado de graça. Ele senta reto nas pedras e
rala mesmo. Não sente dor, como se o traseiro estivesse em Porto do Capim. Ai
de mim. Sou uma iniciante, preciso aprender muito com ele. A vida é feita
dessas precárias alegrias. Arnaldo.