11.3.15

Roteiro sentimental da luz



Minha coleção começou na primeira vez que seus dedos amassaram meus peitos como em uma bancada de nhoque. Só que meu tabuleiro não era lugar de farinha. Dois golpes curtos. Dois segundos. Os gritos de rotina e meia hora para chegar na estação ferroviária. A nova casa tem um quarto só para colecionáveis. Um armário de aço, uma mesa com rebaixo, banquetas, potes de boca larga. Não procuro peças, elas acontecem. De algum modo sinto até que elas é que me buscam. Não paro para interpretar o que sinto. A preocupação maior é com a correção da coleta, acondicionamento e transporte. Depois de todo esse tempo, consegui uma variação fascinante. De formas, tamanhos e cores. O gesto parado no ar. Ou misturando cores na paleta. Dobrados ou esticados. São acusatórios, súplices, aterrorizados, indolentes, impertinentes. Unhas quebradiças, decoradas, fúngicas, roídas. O faiscar de uma joia. De uma artéria. Dentro de seus potes transparentes, ouço-os tocar "Now He Sings, Now He Sobs". Uma pequena provocação. Chick não é dos meus preferidos, mas entendo a mensagem. Peças brutas querem me convencer de que podem executar estruturas melódicas complexas. O que não me impede de cantar pela casa. Preparar um sanduíche e recostar-me no sofá da sala. Baixo o volume. Cada objeto ali fala comigo. Engana-se quem acha que não nos relacionamos com cada peça que colocamos dentro de casa. Enquanto faço estas anotações, na verdade estou pensando no formato dos vidros de meus perfumes. Fecho os olhos e falo com eles – Creio na alma, até na do cipreste. Um soneto. E fica tudo escuro. O que me lembra lanternas. Apesar de muitas tentativas, não tenho qualquer que me seja útil numa emergência. Preciso de uma lanterna profissional, como a dos técnicos em eletricidade. Uma boa lanterna faz toda a diferença. Tudo é uma questão de luz. O roteiro sentimental da luz. Desde o sol ao abajur de canto. Dedos que acendem faróis. Batem na porta. Na cara de alguém. Entram no corpo. Assinam contratos. Retalham notícias. Contam cédulas. Aplicam 5 gramas de tiopental de sódio. Abrem gavetas. Armários de aço. Tateiam as paredes do seu corredor. Aumentam o volume. E apagam a luz.