19.11.17

Incognita



Não acreditaram quando eu disse que não era sua mãe. Os três empalideceram ao ouvirem minha voz. Não acreditaram nas minhas juras, nos meus documentos, nos repetidos exames de DNA. Queriam a mãe de volta mesmo que na réplica de uma completa estranha. Eu. Nas fotografias e quadros espalhados pela casa dos três irmãos, uma mulher venerada. Na sala de estar, na sala de jantar, no salão de música, nos nichos entre um cômodo e outro, na capela da fazenda. Diziam a quem aparecesse que eu era a mãe em meus menores gestos. Na caligrafia, nos fios de cabelo fora da ordem. Não querendo constranger-me no papel, queriam que eu me sentisse livre para movimentar-me, falar e agir no meu natural, que quanto mais espontânea, quanto mais eu mesma, mais eu era a outra. Após meses de insistência, por-favores e no final súplicas, ficaram felizes quando me viram enfim instalada e habitando o quarto da mãe, nas ensolaradas terras da família. Permitiram que eu continuasse trabalhando em meu ofício, vestindo minhas próprias roupas e perfumando-me com o que agradasse meus sentidos. Minha única obrigação era ser eu 24 horas por dia, sem mudar um milímetro. Andar como sempre andei, levar o garfo à boca da forma que sempre levei, perder-me nas nuvens do céu como sempre me perdi. Falar com a minha voz meus pensamentos, verter minhas dores com as minhas lágrimas. Eles sempre estariam ao meu lado para ouvir e consolar-me. Respeitavam meus longos momentos de solidão, minhas estadias no isolamento, meu silêncio. Nesses episódios, a saudade deles só fazia aumentar. E mais tarde, o prazer do reencontro queimava o corpo dos três como um êxtase. Após quatro anos comecei a adoecer por qualquer motivo. Médicos, panaceias, acompanhantes, espiritismos. Quando me recuperei, levaram-me para conhecer o mundo. Terra cognita. Terra incognita. Comiam, riam e brindavam de olhos presos na mãe que eu lhes dera. A Terra Reconquistada. E assim foram me vendo envelhecer como envelheceria a mãe tão prematuramente morta. Enchiam-me de atenção e cuidados, contavam minhas rugas, faziam cálculos. No último Natal presentearam-me com uma cadeira de rodas motorizada, uma caixa de cadernos em branco franceses para minhas anotações e uma nova acompanhante multilíngue para eu não me esquecer dos idiomas que dominava. Sabiam que eu já não podia trabalhar com o mesmo afinco e energia, mas que minhas dores de cabeça e vertigem ainda permaneciam como sinais vivos e incólumes de minha atividade cerebral minutos antes de escrever qualquer coisa. Eu os via pelo espelho reunidos ao meu lado. Pálidos e emocionados. Eles não envelheciam. Eram os mesmos filhos como os conheci naquele fim de tarde em que parei no posto da estrada para verificar os freios e tomar um café que me espantasse o sono.