5.4.19

Alma


Rott acorda como é da natureza de todo animal. Chuta as cobertas e ao passar na direção do banheiro dá uma olhada pela janela. O pai entra no carro e parte. A mijada é rápida. Corre para o escritório. O velho passa as noites escrevendo e nem olha mais na minha cara. Procura. Gaveta 1. Gaveta 2. Pasta vermelha. Senta na cadeira dura, almofada encardida. Segura os papéis com mãos firmes. Vou ter o dia inteiro para fazer isso, mas quero saber agora. Põe um mentolado do pai na boca. Porco.

Folha 1

Vontade de potência reduzida às necessidades fisiológicas mais elementares. Se eu ficar aleijado, o garoto não presta nem para limpar minha bunda. Mal entro em casa e ele se tranca no quarto. Não vai mais ao colégio nem toma banho. A cera escorre dos ouvidos feito santo derretendo no fogo das velas. É macabro. O humanoide que fizemos por amor.

Aprendi a fazer batatas fritas. Duas tentativas fracassadas. Viuvez é lembrar dos mínimos gestos dela. Na terceira vez ficaram boas. Não iguais. Ela sorri. Eu sei que sorri.

O técnico da loja disse que meu relógio estava morto. Me espantou o seu tom de cúmplice confirmando o óbito para um assassino: eu.

Rest In Picture – dormi ontem com uma foto de Leonor sobre o peito.

O garoto não me dirige a palavra desde o enterro de Leonor. Foi nesse dia que parou de tomar banho. Não nos olhamos.

O irmão de Leonor passou aqui um dia depois do enterro. Sabe da minha situação. Quer comprar a casa para instalar-se aqui com a família. Mais espaço para os filhos. Jardim. Eu poderia ir morar num apartamento pequeno no centro. O garoto gosta dele. O irmão dela brinca mas não quer saber. Não vai tomar para si esta responsabilidade. O garoto se ilude. Eu poderia ter pena. Estou oco. Vou dormir.

Folha 2  

Escrever para lembrar. Não. Escrever para calar. O meu corpo se esboroa.

Saí com cheiro de roupa guardada ao lado da dela.

Ontem o moleque trouxe uma namorada aqui. Chamada Eluama. Não sei por me dizerem, nem fui apresentado, mas porque ele deu um grito de madrugada e ela fez aaah. Se não for o nome dela é uma música. Ficaram trancados o tempo todo. A garota tem marcas vermelhas ao longo dos braços. De manhã nem vi saírem. Leonor se preocupava com drogas. Por mim eles podem sobredosar-se à vontade. Não conto isso a ela.

Preparei um suco de tangerina com uma pitada de gengibre e gelo até a boca, sem vodca. Acompanhei à parte com gim puro num copinho de cachaça. Coloquei um show do Simply Red para assistir e dormi relaxado. Era a sua banda preferida.

Folha 3

Vendi 2 apólices hoje. Foi até um dia de sorte. Não dou 6 meses e a empresa fecha. O dono torra tudo e se recusa a vender o seu apartamento em Paris para cobrir as dívidas. Só demite. Na equipe tem 4. Trabalho 12 horas por dia. Pedi emprestado para sepultar Leonor. Vou ter de vender a casa mesmo, mais cedo ou mais tarde.

O garoto hoje berrou a noite inteira ouvindo música nas alturas. Tranquei minha porta. O telefone tocou várias vezes. Não atendi  campainha. Qualquer dia desses os vizinhos mandam a polícia. Vou pedir um atestado de surdez para Paulo amanhã. Talvez o levem em cana se acharem drogas. Ele já passou dos 18.

Não tive filhas. Agradeço a Deus por isso. O mundo é muito cruel com as meninas. Leonor era da mesma opinião.

A gravata preta e a camisa social azul que usei no dia do enterro. Sumiram.

Folha 4

Tirei a noite para começar a ler o romance de um amigo escritor. Ele me cobra isso desde o lançamento, no ano passado. Não tenho paciência para romances, prefiro biografias de superação. Estudamos juntos desde pequenos. Quando virei corretor, ele perdeu o interesse. Perdeu Leonor também, para mim. Por isso escreve romances. Ela me chama de bobo e balança a cabeça. Sinto um arrepio de prazer.

Não passei do segundo capítulo e fui lá fora para o jardim ver a noite. Sento no nosso balanço. Plantas frias. O que será que ela está pensando agora? Eu não posso amar o que ela ama. Não tudo. Leonor um dia amanheceu doente. A névoa baixa no amplo espaço do jardim. Balanço devagar e com desespero.

O globo terrestre que Leonor me deu. Seu primeiro presente. Sumiu.

Folha 5

Rott quando sai deixa o quarto trancado. Não posso ver se a gravata preta, a camisa azul e o globo terrestre estão lá dentro com ele. Só quero saber dessas três coisas. O que é dele não me importa. Meu pai também era assim. Nunca me beijou. Preciso ser honesto ou me perco.

Amor não se transfere. Leonor nunca entendeu isso. Nem na hora de morrer, quando me pediu.

O que mais me assusta é o tempo que tenho pela frente. Eu a procuro dentro de casa e ele tira a venda dos meus olhos.

Missa de 1 mês de falecimento. Meu cunhado e sua família. Duas amigas de Leonor do centro de alpinismo. Dois vizinhos. Um colega da firma. O escritor. E Paulo. Rott não apareceu. Deixei um bilhete na mesa da cozinha ontem. Amanheceu em pedaços. Joguei na lixeira e tomei meu café.

Sim, gostei muito do seu livro. As chaves do abismo, que título formidável. Eu te telefono outra hora. Obrigado por vir.

O cunhado vai passar amanhã para fazer uma proposta pela casa. Andei procurando nos jornais um apartamento em conta para mim. Preciso comprar e que me sobre ainda algum dinheiro. Para Rott também, cuidar da sua vida como bem entende. Os jovens precisam de liberdade. Não de um pai.

Paulo gargalhou no meio da missa com a história do atestado de surdez.

Folha 6

Cheguei em casa às dez da noite. Esgotado. Tudo em silêncio, embora o garoto estivesse no seu quarto. Desabei no sofá e fechei os olhos por alguns minutos. Ao abri-los, vi Rott parado na minha frente. Esqueci isso aqui, ele disse pela primeira vez. E apanhou na mesa de centro o que julguei ser umas cordas coloridas. Minha vista estava embaçada. Você é alpinista agora também? Ele não respondeu. Leonor escalava com suas amigas todo fim de semana. Nunca me preocupei, ela era profissional e muito cautelosa. Como um sanduíche e vou para a cama. O garoto tem se alimentado e parece que voltou a tomar banho. Uma toalha molhada no chão do banheiro. Não pego.

Folha 7

Encontrei aqui perto um apartamento na rua...


Rott devolve o maço de folhas para a pasta. Toma um café, veste a camisa azul, põe a gravata preta e se enterra na bem aparelhada oficina de marcenaria do pai. Procura. Ele tem o dia inteiro para fazer isso. E 3 planos desenhados na cabeça. Falta escolher. Ao seu lado uma cópia do Liber Sententiarum Inquisitionis com ilustrações. Um manual de mecânica. As cordas da mãe quando o levou ainda criança para subir uma montanha inexplorada na Serra da Boca. Você foi corajoso, meu menino, e viemos abraçados até o acampamento. Na barraca, antes de dormirmos, ela me beija, apaga o lampião e sussurra no meu ouvido: Lembre-se, meu querido, uma corda deve ter uma alma sem falhas.