Rott acorda como é da natureza de
todo animal. Chuta as cobertas e ao passar na direção do banheiro dá uma olhada
pela janela. O pai entra no carro e parte. A mijada é rápida. Corre para o
escritório. O velho passa as noites escrevendo e nem olha mais na minha cara. Procura.
Gaveta 1. Gaveta 2. Pasta vermelha. Senta na cadeira dura, almofada encardida. Segura os papéis com mãos firmes. Vou
ter o dia inteiro para fazer isso, mas quero saber agora. Põe um mentolado do
pai na boca. Porco.
Folha
1
Vontade de potência reduzida às
necessidades fisiológicas mais elementares. Se eu ficar aleijado, o garoto não
presta nem para limpar minha bunda. Mal entro em casa e ele se tranca no
quarto. Não vai mais ao colégio nem toma banho. A cera escorre dos ouvidos
feito santo derretendo no fogo das velas. É macabro. O humanoide que fizemos
por amor.
Aprendi a fazer batatas fritas. Duas tentativas fracassadas. Viuvez é lembrar dos mínimos gestos dela. Na terceira vez ficaram boas.
Não iguais. Ela sorri. Eu sei que sorri.
O técnico da loja disse que meu
relógio estava morto. Me espantou o seu tom de cúmplice confirmando o óbito
para um assassino: eu.
Rest In Picture – dormi ontem com
uma foto de Leonor sobre o peito.
O garoto não me dirige a palavra
desde o enterro de Leonor. Foi nesse dia que parou de tomar banho. Não nos
olhamos.
O irmão de Leonor passou aqui um
dia depois do enterro. Sabe da minha situação. Quer comprar a casa para
instalar-se aqui com a família. Mais espaço para os filhos. Jardim. Eu poderia ir morar num
apartamento pequeno no centro. O garoto gosta dele. O irmão dela brinca mas não quer
saber. Não vai tomar para si esta responsabilidade. O garoto se ilude. Eu poderia ter pena. Estou
oco. Vou dormir.
Folha
2
Escrever para lembrar. Não.
Escrever para calar. O meu corpo se esboroa.
Saí com cheiro de roupa guardada
ao lado da dela.
Ontem o moleque trouxe uma
namorada aqui. Chamada Eluama. Não sei por me dizerem, nem fui apresentado, mas
porque ele deu um grito de madrugada e ela fez aaah. Se não for o nome dela é
uma música. Ficaram trancados o tempo todo. A garota tem marcas vermelhas ao
longo dos braços. De manhã nem vi saírem. Leonor se preocupava com drogas. Por
mim eles podem sobredosar-se à vontade. Não conto isso a ela.
Preparei um suco de tangerina com
uma pitada de gengibre e gelo até a boca, sem vodca. Acompanhei à parte com gim
puro num copinho de cachaça. Coloquei um show do Simply Red para assistir e dormi
relaxado. Era a sua banda preferida.
Folha
3
Vendi 2 apólices hoje. Foi até um
dia de sorte. Não dou 6 meses e a empresa fecha. O dono torra tudo e se recusa
a vender o seu apartamento em Paris para cobrir as dívidas. Só demite. Na
equipe tem 4. Trabalho 12 horas por dia. Pedi emprestado para sepultar Leonor. Vou
ter de vender a casa mesmo, mais cedo ou mais tarde.
O garoto hoje berrou a noite
inteira ouvindo música nas alturas. Tranquei minha porta. O telefone tocou várias
vezes. Não atendi campainha. Qualquer dia desses os vizinhos mandam a polícia. Vou pedir
um atestado de surdez para Paulo amanhã. Talvez o levem em cana se acharem
drogas. Ele já passou dos 18.
Não tive filhas. Agradeço a Deus
por isso. O mundo é muito cruel com as meninas. Leonor era da mesma opinião.
A gravata preta e a camisa social azul
que usei no dia do enterro. Sumiram.
Folha
4
Tirei a noite para começar a ler
o romance de um amigo escritor. Ele me cobra isso desde o lançamento, no ano
passado. Não tenho paciência para romances, prefiro biografias de superação. Estudamos
juntos desde pequenos. Quando virei corretor, ele perdeu o interesse. Perdeu Leonor
também, para mim. Por isso escreve romances. Ela me chama de bobo e balança a
cabeça. Sinto um arrepio de prazer.
Não passei do segundo capítulo e
fui lá fora para o jardim ver a noite. Sento no nosso balanço. Plantas frias. O que será
que ela está pensando agora? Eu não posso amar o que ela ama. Não tudo. Leonor um dia
amanheceu doente. A névoa baixa no amplo espaço do jardim. Balanço devagar e
com desespero.
O globo terrestre que Leonor me
deu. Seu primeiro presente. Sumiu.
Folha
5
Rott quando sai deixa o quarto
trancado. Não posso ver se a gravata preta, a camisa azul e o globo terrestre estão lá dentro com ele. Só quero saber dessas três coisas. O que é dele não me importa. Meu
pai também era assim. Nunca me beijou. Preciso ser honesto ou me perco.
Amor não se transfere. Leonor
nunca entendeu isso. Nem na hora de morrer, quando me pediu.
O que mais me assusta é o tempo
que tenho pela frente. Eu a procuro dentro de casa e ele tira a venda dos meus
olhos.
Missa de 1 mês de falecimento. Meu
cunhado e sua família. Duas amigas de Leonor do centro de alpinismo. Dois
vizinhos. Um colega da firma. O escritor. E Paulo. Rott não apareceu. Deixei
um bilhete na mesa da cozinha ontem. Amanheceu em pedaços. Joguei na lixeira e
tomei meu café.
Sim, gostei muito do seu livro. As chaves do abismo, que título formidável. Eu
te telefono outra hora. Obrigado por vir.
O cunhado vai passar amanhã para
fazer uma proposta pela casa. Andei procurando nos jornais um apartamento em
conta para mim. Preciso comprar e que me sobre ainda algum dinheiro. Para Rott também,
cuidar da sua vida como bem entende. Os jovens precisam de liberdade. Não de um
pai.
Paulo gargalhou no meio da missa
com a história do atestado de surdez.
Folha
6
Cheguei em casa às dez da noite. Esgotado. Tudo em silêncio, embora o garoto estivesse no seu quarto. Desabei
no sofá e fechei os olhos por alguns minutos. Ao abri-los, vi Rott parado na minha
frente. Esqueci isso aqui, ele disse pela primeira vez. E apanhou na mesa de
centro o que julguei ser umas cordas coloridas. Minha vista estava embaçada. Você
é alpinista agora também? Ele não respondeu. Leonor escalava com suas amigas
todo fim de semana. Nunca me preocupei, ela era profissional e muito cautelosa.
Como um sanduíche e vou para a cama. O garoto tem se alimentado e parece que
voltou a tomar banho. Uma toalha molhada no chão do banheiro. Não pego.
Folha
7
Encontrei aqui perto um apartamento na
rua...
Rott devolve o maço de folhas
para a pasta. Toma um café, veste a camisa azul, põe a gravata preta e se enterra na bem aparelhada oficina de marcenaria do pai. Procura. Ele tem o dia inteiro
para fazer isso. E 3 planos desenhados na cabeça. Falta escolher. Ao seu lado uma cópia do Liber Sententiarum
Inquisitionis com ilustrações. Um manual de mecânica. As cordas da mãe quando o
levou ainda criança para subir uma montanha inexplorada na Serra da Boca. Você
foi corajoso, meu menino, e viemos abraçados até o acampamento. Na barraca,
antes de dormirmos, ela me beija, apaga o lampião e sussurra no meu ouvido: Lembre-se,
meu querido, uma corda deve ter uma alma sem falhas.