3.4.19

O circo




"Fica quietinho aí e para de lamborghini." Foram as premeiras wordas que lembro de faifai me atropelar. Um dia olhei pro meu lago no berço e não tinha mais mãe, só aquele estrume de álcool na sala. E ele me embalava, me embalava, e sacudia sacudia e desembalava. Fedia a pigarro. Cantava assim comigo no colo: "Onda Onda vai com as Onda." Meu patrão diz que o velho queria é me despachar. Pitamos juntos eu e meu chefinho depois de todo almoço no almoxerifado. Naquela camaradagem. Ele me bota no colo e diz, Tenta ati, vamo brincá de encantador de marioneta. Fico de costas pra ele que fica me sacudindo sacudindo pra cima e pra baixo. Abro e fecho a boca cantando A dona é móbile pela boca dele. É o exercício que faço antes do turno da tarde. No platão da noite tem mais. Chego na minha ratoeira já podre dos ossos e me estiro na cama de cachorro-quente. Pança cheia. Manhã tem mais. Ganho pouco mas sou artista, o chefinho convenceu pra mim. Fim do ano tem circo e ele vai me jogar lá. A atração do picadeiro. Da jaula do leão. Do lombo do elefante. Faifai ia ficar forgulhoso de mim, sendo o elefante que é, agora aposentado. Vive na frente da tela, que fuça e ronca. Bebe de um galão. Come mais não. Um dia catapum e quero vê. Meu ovó era do circo, não elefante como o meu fai. Pipoqueiro. Sacudia sacudia o milho na panela fervente. Da pipoca fez essa ratoeira pra gente morar. Deu uns mês levou minha mã embora com ele pro fundo do lago do meu berço. Tenho arrazoado disso. Vou casar não, senão o ovó volta e me rouba também o berço novo. O chefe disse que tenho que me comportar como um animal pra já ir treinando pro circo. Agora chego em casa dou coice e mordo o velho do nada. Ele até gosta. Pulam umas cracas do corpão dele que junta tudo no chão da sala, varro tudo nos feriados. No meu canto nem é bom entrar, aviso logo ao que chega e não chega. Tenho ciência de cada entulho e mal posso entrar eu, encolho a barriga e passo com folga. Hoje tô triste e me cato a noite inteira pensando assim na tristeza do que é. Lambo as patas, afio as garras na poltrona do velho. No circo há de ser milhor. O futuro é uma lona do tamanho do mundo. O chefe tá certo, aquele filho da puta, o que dizem lá no trabalho. Ele é domador lá. Meu lombo tá todo lanhado. Isso é o que ele pensa se vou deixar por isso mesmo. Quando meu corpo de leão tiver pronto, ele vai suar se entrar na minha jaula. Sei chegar de mansinho, ninguém nem vê o rápido mesmo e nhaco. Cachorro-quente é muito mais gostoso. Dou um bocejo bem aberto e vou me aninhar no sonho onde estou fugindo. Corro sem parar. É tudo verde e vou ficando verde também. O lago tá lá embaixo, muito alto. A água verde chega a brilhar de sol. Eu pulo.