21.4.19

The lark ascending




por que você não enfia esse rojão no cu?, obviamente ele não ouviu essa frase porque o rojão estava estourando. eu costumava ofendê-lo nas ocasiões em que o barulho externo encobriria a minha voz. um dos segredos de um casamento duradouro. porque, entenda, pensar mal não adianta muito, alguma hora as veleidades precisam ser articuladas em alto e bom som. ele não ouvia nada e eu ficava aliviada por ter liberado coisas há muito engasgadas. claro que isso não resolvia os problemas, só que abandoná-lo era um x que eu não queria calcular. toda noite também, já na cama pronta para dormir, eu elaborava roteiros diferentes em que eu o matava sem piedade. de diferentes engenhos possíveis. por fogo, ar, água e terra. enquanto em silêncio eu ia rodando a cena em minha mente até o desfecho, um sono acolhedor me embalava para o dia seguinte. eu acordava então sem olheiras e muito bem-disposta. tomava um lauto café e saía para minha caminhada com os cães me puxando. depois trabalhava o expediente doméstico inteiro sem pensar no mundo e na vida. à noite ia para as redes sociais pregar mentiras. fazer-me de tola. enunciar opiniões que eu não tinha, ou que tinha mas deixava de ter no minuto seguinte. se eu falasse verdades, receberia ofensas que não tinha paciência nem talento para revidar. e o que era verdade para mim?, eu não fazia a menor ideia. meus pensamentos eram uns retalhos que eu costurava para me distrair. não sem aborrecimentos ocasionais. inconclusões. idas e vindas. lembranças inoportunas e insípidas. fatos desbotados. pessoas que conheci e já morreram para a realidade em que eu vivia ali sozinha e longe das desgraças globais que todos compartilhavam sofregamente. o mundo é uma merda mas leio livros. livros que reafirmam essa concepção das coisas. não reuni até hoje evidências suficientes que me provem que o mundo não seja uma merda. pois bem, tem o sol, tem o céu, o mar, plantas e animais. paramos por aí. e a música que estou ouvindo agora para inspirar minha fome, The lark ascending. uma amiga traiçoeira diria: tem o sexo também, e mencionaria meu nome para envolver-me emocionalmente na conversa. eu olharia sério para ela e soltaria uma argumentação científica para rebater a sua ideia esdrúxula sobre as vantagens do sexo. ela não entenderia nada porque eu falava por fórmulas, depois daríamos um gole no uísque e mudaríamos de assunto. como o meu jardim estava bonito, por exemplo. fulano chegou de viagem. meu filho ganhou uma bolsa, vai estudar em copenhague. que ótimo. bem longe de você, eu pensava. estou vendendo sacolas ecológicas temáticas, sabe, a vida está pela hora da morte. ela estava querendo me convencer de que sustentaria o filho em copenhague vendendo sacolas. eu sorria afirmativamente. gosto de dar força ao livre empreendedor e suas técnicas de sobrevivência num cenário hostil. ofereci-me para ajudá-la no que fosse possível, com o dinheiro do meu fulano, lógico, porque eu não tinha um tostão. ele sem dúvida ficaria feliz com o encargo porque admirava as técnicas de sedução da minha amiga não era de hoje. nunca tive ciúme. desde que pastasse longe da casa que habitamos. fico pensando se esse não seria o motivo de ele soltar tantos rojões. uma mania que nunca entendi. em datas comemorativas e não comemorativas. a qualquer hora do dia, do mês mais insosso. devia estar celebrando a sua liberdade, o meu pouco caso, e/ou nenhum, que lhe poupava sentimentos de culpa, ou quem sabe o seu desejo inconsciente mais oculto fosse instilar uns decilitros de ódio na minha veia máter para eu aprimorar a última cena em que ele, glorioso e sanguinolento, agonizava no colo de sua lady macbeth que mata sem sujar as mãos. estou sentada aqui por tempo demais, o corpo me dói, preciso preparar o jantar e finalizar minhas confissões do dia. minha mão, um pouco dolorida. escrever a lápis é um bom exercício. meus metacarpos são de primeira. conservam ainda a agilidade da adolescência quando eu cortava a bola na cara das rivais. jamais ganhei uma taça. pena. mas cortarei umas cenouras agora para a sopa. meu fulano detesta sopa. enquanto a preparo desenvolvo os diálogos que me levarão ao assassinato de hoje. será uma noite repousante.