6.5.20

Mo Ghràidh





Sai do banho abrasador e o vapor se espalha pelo quarto. Sua cabeça dá um lento giro de coruja. Por um momento imagina-se no pico mais dramático das Gàidhealtachd. Digo isso porque o conceito de “Terras Altas” há muito foi aviltado pelo feudo Disney e hoje é atribuído a qualquer daquelas colinazinhas ovoides vagabundas da Irlanda, mas se você diz A'Gàidhealtachd, aí sim, é sinal de que Elizabeth II já está plenamente cozida. Rende 8 porções. Mo Ghràidh então serve-se de uma dose tripla de Talisker puro e fica apreciando quimericamente as ovelhas lá no pé com um gosto de alga marinha na boca. Vem ao devaneio se o que Mallarmé faria com ela na cama da rue Rome 89 seria sugestão ou inação transfigurada. Mas seu prazer dura pouco. Uma repentina voz de pedra gargalha pela lâmpada acesa do teto e começa a entoar "Chan eil deireadh aig bròn", de Tom e Vinicius. Terminada a música inteira em Celtic fusion, o espectro transtorna de humor e urra em gaélico escocês: "Nào sei por que essa tua melancolia. Senta aì e escreve logo uma bodega qualquer para enfunar o teu leabhar. Para com essa gesta de bancar a Patti Smith discìpula de Adèlia Prado." Ora, Mo Ghràidh jamais leu um livro sequer de Patti Smith, pensei em responder por ela sem me importar se era verdade. Além disso, Como posso dar ouvidos a quem, na falta de panela, cozinha em bucho de carneiro?, ela pensou sem dizer nada.  Apenas grunhiu "Fàg mi leam fhèin", apagou a luz de voz intrometida, pegou a toalha e se pôs a secar os metacárpicos redondilhos. A máquina de escrever esperando sobre a mesa. Eu, da mesma forma, esperava ver o que sairia escrito para poder copiar. Há duas semanas a máquina está parada ali desde que ela a resgatou do gabinete dos fundos. Por enquanto, permanece calada. As barras dos tipos enferrujando. Eu poderia fazê-la falar como fiz com a lâmpada. Poderia fazer com que todas as tranqueiras do cenário começassem a taramelar. Mal posso andar por aqui para prosseguir com minha (aice) história. (Eu tencionava 45 capítulos gordos com 2 ideias gerais, centenas de desenvolvimentos frívolos para cada uma, corpo  14, espaço duplo.) O vapor encarcerado enfim se dissipa e Mo se veste em trinta minutos porque são inúmeras camadas e a temperatura desabou veramente nas Gàidhealtachd. Eu fico morrendo de calor com tanta roupa. Mas... o que está acontecendo aqui? A imaginação dessa manceba já foi longe demais. Não posso mais alcançá-la. Açodada, desce a montanha correndo e temo que tropece e se esborrache no lombo das ovelhas que coloquei ali somente para ilustrar a passagem. Fiquei só e sem input. Vou te contar, digo alto enquanto cheiro uma carreira de álcool gel. Os personagens não têm mais respeito por ninguém. Primeiro conselho de Áed mac Cináeda: “Não escrevas muito. Vão ler coisas que não disseste.”