26.2.13

Não volta para o mar




Lulike tem duas pernas lindas. Os braços não ficam para trás. Descansados sobre a mesa, Lulike rola meus poemas duas horas pela manhã. Uma para cada perna. Eu sei não por me contarem, ou por instrumentos de pesquisa. Eu sei porque vejo daqui a janela de Lulike, ali, bem em frente à minha, onde ninguém lê meus poemas duas horas por dia. Eu também me chamo Lulike, um nome muito comum na nossa região. Lulike abre o laptop e quando aponto meu Outland vejo minha página refletida no espelho da sua parede. Saindo da moldura. Peixinho de aquário não volta para o mar.  À tarde, no mercado de Havelská, Lulike multitoque não me cumprimenta. É a parte que fica faltando. Fazemos compras e de repente me sinto lançada em Utah. Ouvimos músicas diferentes. Ela sabe quem eu sou, mas finge tão bem que até duvido. Nesses momentos agradeço a Heqet por me lembrar que eu estava naquele lugar e não sabia. Fico uma meia hora arando ausências e compro meio quilo de pernas de rã como sinal de devoção. Entre cabelos cobrindo meus olhos, vejo-a puxar a coleira de seu Schnauzer de quatro patas e afastar-se pela rua. Contei o acontecendo a Lulike, meu colega de pós-lit em De ruina mundi. Com dor de dente e pouco receptivo, ele disse para eu botar um homem dentro de casa e fornicar,  que pareço uma prostituta de janela procurando leitores como um bicho no corpo. Não teve nem curiosidade científica de entrevistar a Lulike de duas pernas só, o fenômeno da cidade. Agradeço pela sua simpatia, eu quis lhe dizer, mas pensei, Vá ao cu. Um dentinho que dói não é a peste negra, só um pouco pior que elevador enguiçado. Lulike estuda tanto e ainda guarda rancores. Não os todos, mas estes. Tiro uma foto deles. Não saem tão bons. Está chovendo. Parece tudo tão aborrecido e solitário. Vou fazer pinturas disso, com maçãs do rosto bem gordas. Dou um gole no vinho enjoativo para fazer descer as pernas de rã e um arrepio eclipsa luas tatuadas. Sopro o pó do Homem elefante na estante. No meio da noite, Lulike passa a chave na porta, entra na cozinha, sai de lá comendo uma banana. Abre o laptop e ergue a banana na minha direção. Sorri. Eu sorrio e me levanto sem embaraços pela primeira vez. Aqui acaba a história. Daqui para a frente posso andar como quiser.



21.2.13

Sanatório das Almas





Alguém já disse que uma biblioteca é o sanatório das almas. Uma boa definição. Há os mais melosos que a chamam de coração da humanidade. E ainda aqueles que acham que toda biblioteca não passa de um depósito das maldades do paganismo e do ateísmo. Longe de definir, eu gosto de estar dentro de uma biblioteca. De preferência antiga, muito antiga. Quase medieval. Encardida pelo tempo. Com teto alto e corredores escuros. Corredores não, ruas, avenidas, para eu me perder sozinha por elas. Estantes gigantescas que não poderia alcançar sem uma escada. E escadas, sempre há poucas. O ar, o ar precisa ser irrespirável. Inflamatório. As lombadas, empoeiradas, para se descobrir os títulos pouco a pouco. Letra por letra. Principalmente é preciso ter medo numa biblioteca. Medo do beco ao lado. Da constrição dos contornos. De olhos que nos espiam sobre alceamentos. Medo do escuro. Das ilustrações fantasma. De não conseguir distinguir nunca mais texto e croqui, mesmo sob a chama de um isqueiro. De vozes baixas, de passos lentos que se aproximam e se afastam. Medo dos livros que podem despencar sobre mim e me sufocar. Das linhas em desvio que não devo ler se quiser sair viva da biblioteca. Dos insetos achatados dentro de mapas sem chegar ao seu destino. Medo de começar a roer papel. De ser roída se fizer da palavra escrita uma forma de vida justificada em colunas. De onde se lê “vida”, leia-se “morte”. De poemas grampeados a cavalo. Há que se temer bibliotecas. E acorrentar livros. Nervuras. Como nesta biblioteca na Filadélfia, onde vivem acorrentados séculos e séculos de folhas e almas.


13.2.13

Miramar



Talvez assim, cara a cara,
 eu não tenha hoje mais nada para lhe dizer.
 Você espera repercussão.
 Que uma palavra minha se aloje no seu peito como uma bala.
 Que eu cace um vocabulário que caiba no seu sentimento,
 como quem monta uma metralhadora peça por peça na mesa de um bar e ensine a usá-la.
 Mas o tempo dos oradores já passou e a camarada Mauser enferrujou.
 Nunca fui tudo isso que você pensa.
 No dia da assembleia, eu cheirava num banheiro na Cinelândia.
 A polícia bateu na porta e ela me puxou com um beijo na boca. 
 Não abrimos e lá se foi a guerrilha pela privada com o resto do pó.
 Roubar um banco é bem mais fácil que o meu coração.
 Ela caiu na Belém-Brasília e o Miramar logo depois.
 Subindo na marquise do cinema, eu trocava as letras por um filme com o seu nome.
 Sentada na escadinha que dá na areia, hoje talvez assim, cara a cara,
 o pôr do sol não tenha mais nada para me dizer.



4.2.13

A lenda macabra de Carlos Magno











Não sei se a história que vou relatar aqui é muito antiga ou se chegou aos meus ouvidos há muito tempo. Se  uma  verdade contada por tantos acaba virando mentira, peço que me perdoem se os detalhes da narrativa acidentalmente estropiarem a natureza dos acontecimentos. Pois a outra verdade até onde sou capaz de acreditar e de me lembrar é que o imperador Carlos Magno já era muito velho quando tudo isso aconteceu. Vivendo solitário em seu palácio de Aix-la-Chapelle, o rei, já tantas vezes viúvo, não tinha muito com o que se distrair além das infinitas reflexões acerca da sua sucessão. Os barões da corte, preocupados com a saúde frágil do rei que a cada dia parecia mais deprimido, e temendo que a morte súbita de Carlos Magno fizesse subir ao trono Pepino, o Corcunda, o primogênito herdeiro que não lhes convinha, decidiram em uma assembleia de notáveis que o rei precisava de uma rainha. E uma rainha jovem. O rei concordou com a decisão é só exigiu que ele mesmo escolhesse sua futura consorte. No entanto, o alívio de todos durou pouco porque, para surpresa geral, a escolhida foi uma jovem donzela alemã, criada do palácio. As bodas foram realizadas com toda a pompa e em pouco tempo o rei deixou de lado a sua tristeza para entregar-se a uma paixão amorosa irrefreável que fazia com que se esquecesse de sua dignidade real e negligenciasse os deveres da coroa. Do nascer ao pôr do sol o casal era visto em folguedos sensuais, totalmente nus, correndo pelos jardins do palácio ou se esgueirando pelos corredores, sem se preocupar ou se intimidar com a atenção de olhos estranhos, fizesse chuva, fizesse sol. A situação passou do constrangimento abafado ao escândalo declarado. A vida íntima do rei era motivo de chacota nas tavernas mais longínquas. Quando um dia a jovem esposa do rei caiu doente, vindo a falecer subitamente não se sabe se de friagem ou envenenada, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. Inconsolável, o imperador mandou embalsamar o corpo morto de sua amada e ordenou que o colocassem em seu leito nupcial, recusando-se a se separar dele. Todas as noites o rei deitava-se ao lado do corpo frio de Constança. Tal paixão macabra espalhou-se pelo vento chegando aos ouvidos sagrados do papa que, suspeitando de bruxaria, enviou um emissário para solucionar o mistério daquela obsessão necrófila. Em chegando ao palácio, o bispo exigiu uma vistoria completa do corpo insepulto da rainha, a ser realizada por ele mesmo. Vasculhando aqui e ali, erguendo pernas e braços, examinando dedos, separando fio por fio da farta cabeleira da jovem morta, o bispo nada encontrou. Seria preciso um exame das cavidades. Por onde começaria? Achou menos grotesco começar pela boca. Afastou com dificuldade os lábios rígidos e ao puxar para fora a gélida língua, seus dedos esbarraram num metal frio. Banhado em saliva, um anel encimado por uma pedra preciosa pulou na palma da mão do bispo, que guardou-o consigo para posteriores exames. E assim, um dia depois, surpreendentemente, o rei mandou sepultar o cadáver da rainha e, esquecido de tudo, passou a perseguir o bispo pelos corredores do palácio, derramando-se em gentilezas. Desdobrava-se em mimos e elogios, lançando olhares lânguidos constantes ao religioso, situação que deixou toda a corte e o próprio bispo presos de visível embaraço. O bispo, não suportando mais aquele estado de coisas e vendo-se impedido pelo rei de viajar de volta à presença do papa, desesperou-se e, numa noite fria, após muitas orações e sentindo que seu coração fosse desfalecer, correu até as cercanias do palácio, carregando o amaldiçoado anel, e lançou-o no primeiro charco que avistou. No dia seguinte e nos muitos dias que se seguiram até sua morte, Carlos Magno nunca mais foi visto em qualquer dos aposentos do palácio. Apaixonado pelo charco, ao qual chamava de Lago de Constança, o imperador nunca mais se afastaria de suas margens e era visto frequentemente aspirando com voluptuosidade todo o odor fétido de sua lama. Pepino, o Corcunda, jamais subiria ao trono do pai. Com a alma coberta de ressentimento, o que chamava de Deus, virou monge copista e posteriormente magister officiorum da Casa do Senhor, onde inventou esta história. Debruçado sobre códices e pergaminhos, seu ofício incansável  provocou-lhe a alcunha com que é conhecido até hoje.


maira parula

1.2.13

Verlaine & Rimbaud - roteiro de "Total Eclipse"



Verlaine: O que você acha de minha esposa? 

Rimbaud: Não sei. O que você acha dela? 

Verlaine: Ela ainda é muito criança. 

Rimbaud: Eu também. 

(pausa

Verlaine: (para o garçom) Dois absintos... 

Rimbaud: Esse seu último livro... 

Verlaine: Sim... 

Rimbaud: ...não é lá essas coisas. 

Verlaine: Não está falando sério. 

Rimbaud: Puro lixo pré-matrimonial. 

Verlaine: Não. São poemas de amor. Muita gente gostou. 

Rimbaud: Não passam de uma mentira. 

Verlaine: Não são uma mentira, eu amo minha mulher. 

Rimbaud: Amor... 

Verlaine: Sim. 

Rimbaud: Isso não existe. 

Verlaine: O que quer dizer? 

Rimbaud: O que une as famílias e os casais, isto não é amor. É burrice, egoísmo, ou medo. 
O amor não existe. 

Verlaine: Você está enganado. 

Rimbaud: O interesse próprio existe, a união para proveitos pessoais existe, a complacência existe. 
Não o amor. O amor tem de ser reinventado. 

Verlaine: Eu amo o corpo dela. 

Rimbaud: Há outros corpos. 

Verlaine: Não. Eu amo o corpo de Matilde. 

Rimbaud: E a alma não? 

Verlaine: Acho mais importante amar o corpo do que a alma, afinal a alma pode ser imortal. 
Terei muito tempo para a alma, enquanto a carne... 

Rimbaud: (bufando

Verlaine: O que foi? É o meu amor pela carne que me mantém fiel. 

Rimbaud: Fiel. O que quer dizer com isso? 

Verlaine: Sou fiel a todos a quem amei. Se amei um dia, amarei para sempre...
e quando estou sozinho à noite ou pela manhã, posso fechar meus olhos e celebrar a todos. 

Rimbaud: Isto não é fidelidade. É nostalgia. Não espere fidelidade de mim. 

Verlaine: Aaah... por que está tão azedo comigo? 

Rimbaud: Porque você precisa disso. 

Verlaine: Já não basta saber que amo você mais do que ninguém? E que sempre amarei? 

Rimbaud: Ah, cale essa boca, seu bêbado choramingas. 

Verlaine: Diga que me ama. 

Rimbaud: Ah, pelo amor de Deus. 

Verlaine: Por favor, é importante para mim, diga... 

Rimbaud: Você sabe que gosto de você. 

Verlaine: Fiz umas compras hoje de manhã. Comprei um revólver. 

Rimbaud: E pra quê? 

Verlaine: Para você, para mim, para todos. 

Rimbaud: Espero que tenha comprado munição suficiente pra todo mundo. 



(Tradução Maira Parula)


Alberto Ríos




















TARDE

Ela não erguia a cabeça há tanto tempo
que esqueceu como era o céu.
Suspeitavam da mulher
que usava a bolsa tão perto de si
como um braço numa terceira manga preta.
Mas quando se sentou naquela tarde
na praça para esperar a morte 
ela lembrou do céu e do marido.
E esperou. Sem olhar para cima.
Sua intimidade agora era a noite
que deslizou dentro dela
e usou-a como uma luva.



(Trad. Maira Parula)