Costumava
acordar no meio da noite e juntar frases num papel, a mão trêmula, o braço
sem apoio, o sono ainda turvando o cérebro, daqueles sonos que não prestam
para dormir. Nas piores noites desenhava. Não há palavras que saiam nas piores
noites. Desenhos acavalados ou uma suave planta da casa. O lugar onde ficava na
mesa. Os objetos sobre a mesa. As cadeiras. Seu corpo de costas. A cama. O
cachorro morto na moldura. Desenhava todo o seu quarto. Riscava, desenhava o
Pão de Açúcar com o bondinho. A praia embaixo com os barquinhos. Era uma noite
ruim, mas no desenho havia sol. Não coloria. Não fazia retângulos. Só traços
finos num papel que lhe chupava a tinta, ou embarreirava as linhas. Mudava de
papel. Sabia que se escrevesse ou desenhasse, um dia tudo ia sumir do papel,
desbotar, mas o papel continuaria ali. O papel continua em qualquer canto. O
quarto cheio deles. A sua cara de papel, onde alguém desenhara suas feições. Elas
também mudavam, iam sumindo para surgirem outras que não reconhecia mais. O
tempo é um papel. Sempre estará ali do mesmo jeito, se limpando do que
sucessivas gerações borraram. Costumava acordar no meio da noite e fazia essas
coisas. Costumava fazer. Fazer. Hoje acorda e não faz nada. Olha em volta no
escuro e sente dores ao menor movimento. Não sabe dizer se são dores
imaginárias. Se são dores do escuro. Não quer acender a luz. Não faz um
movimento para acender a luz. Apalpa o corpo e vê onde dói. Sabe onde fica cada
órgão. Aprendeu em manuais de anatomia. Nos desenhos dos manuais de anatomia. Abaixo
do estômago não fica o Pão de Açúcar. O coração é o lápis empunhado
pressionando a linha no papel até doer no verso. Uma dor aguda, pontilhada. Seu
nariz está ressecado. Tem todos os remédios na mesa de cabeceira. Leva uma cópia
deles na bolsa também. Nunca fica sem seus remédios. O ombro esquerdo é o que
mais dói. O baixo-ventre. Levanta para urinar. Tudo que está ali dentro do
corpo quer sair. Tem medo de que todos os seus órgãos lhe saiam com a urina. A
bexiga é sombra e luz. Um dique. Pode arrebentar. Extravasar. Sente um arrepio
no corpo. Seu sexo incha. Pensa em se masturbar para aliviar a pressão. Para se
masturbar precisa imaginar algo, mas não imagina mais nada. Está no escuro e
olha em volta. Sabe onde ficam as paredes. Volta para a cama. Não gosta de
determinadas camas. Se acha que vai morrer numa, troca por outra. Há camas que
nos puxam para a morte. Prefere colchões no chão. Sempre que acha que vai
morrer, deita o corpo no chão frio e fica ali até passar. O mal passa. Sempre
passa. É só esperar. O café esfriar na xícara. O dia vai amanhecendo sem
precisar desenhá-lo. Os passarinhos estão em seus barcos cantando. O primeiro
bonde sai da estação. Vê o contorno da praia lá longe. A baía em forma de
bexiga. A dor se apaga sozinha. Já consegue respirar melhor. Tenta buscar uma
frase de última hora. Uma borracha. Pega o caderno e desenha as palavras. Acavaladas.
Elas têm o seu rosto. Olha para ele e não sabe quem é. Não vai mostrá-lo a
ninguém, se a voz que sai de sua garganta não é a mesma que os outros ouvem. Fecha
os olhos para não ver o dia que as ruas fazem depois da noite.