1.5.15

Gilda



Oi, Gilda, sou eu. Aqui de Campos. Não reconhece minha voz? Eu reconheço. A sua. Como esquecer essa voz tão querida. Ficou muda? É a emoção. Aquele bolo na garganta que não deixa passar um fio de cabelo. Você não esqueceu de Campos, tenho certeza. Ou as areias escaldantes de Copacabana empaçocaram sua memória? Pode ter esquecido de mim, mas não, não de Campos. Ainda não está lembrada. Que tristeza. Pois eu lembro até da cor do vestido que Gilda usava no enterro de papai. Sabe, a única coisa que ainda preservo da minha juventude é a memória intacta. Eu ando por seu labirinto e chego rapidamente ao alvo desejado: o quem, quando, onde e como. Você se lembra do enterro de papai? Se lembra do papai antes do enterro? Papai, o que demorou a morrer. É assim que chamo, como nas aventuras de Homero. Como um semideus. Bom, pelo visto vou ficar aqui falando sozinha. Eu sei que você está aí. Ouço o respirar. Sei até que está de pé. Tão surpresa que nem teve expediente para se sentar. Gilda ainda suspira muito? Eu e minhas perguntas. Papai, o que demorou a morrer, dizia que eu fazia perguntas demais. Muito curiosa. Como podem culpar alguém por ter sede de saber? Já viu isso? O mundo anda mesmo de quatro. Meu filho, por exemplo. É tão burro, Gilda. Meu filho, o neto do que demorou a morrer. Você deve estar se perguntando por que diabos estou ligando depois de tanto tempo. Vejo as perguntas rolando por sua cabeça que nem no telejornal. Não pense que ligo para pedir alguma coisa – dinheiro. Ou dar uma notícia ruim. As notícias ruins, todas foram dadas. Sobrou nenhuma. As boas, eu não conto para não despertar invejas. Aquela Gilda era muito invejosa na mocidade. Pedia emprestado minhas roupas, meu batom, meus livros, furtava meus namorados, minhas garotas. Aonde eu quero chegar com essa conversa. Sabe que não sei? Vou falando. É que me deu uma saudade de ouvir sua voz que não estou ouvindo. Mas que importa? Eu sei como é a sua voz. Lembro tão bem. Sempre soando pelos cantos da casa. Me chamando. Me procurando. Me advertindo. Me xingando. E rindo. Rindo alto. O que há em mim para rir? Olho a minha cara no espelho e não acho nada. Estou com tanta saudade do seu suflê de cenoura. Das suas mãos fazendo o suflê de cenoura. Os pulsos finos. Da sua boca provando o suflê de cenoura. Lábios finos. Você nem deve lembrar do meu pulso, dos meus lábios. Mas lembra sim. Hoje está um dia bonito. Se Gilda estivesse aqui, poderíamos passear. Sabia que toda vez que saio com uma pessoa querida guardo as pedrinhas que ficaram presas na sola de meus sapatos enquanto caminhávamos? Esta ligação vai sair cara para quem não está dizendo coisa com coisa. Gilda está perdendo seu tempo comigo. Isso já me traz uma felicidade mínima, porém exultante na sua minimidade. O cascalho preso na sola. É assim que sei quando gosto de alguém. Ando muito perturbada. Acossada por sensações desencontradas, uma atrás da outra. Chego a suar. Este chalé ensolarado, talvez seja o meu último. Tenho de fazer um registro disso. Gosto de perambular pelas palavras sem chegar a lugar algum. Campos. Sem ninguém para se intrometer. Gosto de ligar para Gilda porque ela nunca responde. Ouve tudo quietinha. Etérea. Por isso escrevo. Quem lê fica quietinho. Desaparece. Esperando que algo aconteça do nada. Que os carneiros passem correndo. Que uma flor brote lentamente da estufa. Água doce, água salgada. Que um pré-rafaelita pinte o seu tumor cerebral. Imagino o que pensam. É uma lista de possibilidades assustadoras. Mas não me assusto. Desaparecem. Se você estivesse aqui, veria. Eu mostraria meu diário de boa vontade. Gilda não precisaria roubá-lo para ler ao banheiro. Gilda, a ausência constante em minha vida. Uma blusa jogada na cama. Como eu peço para isso tudo acabar agora? Vida: precisa-se de almas para uma viagem arriscada. Paga-se pouco. Frio e calor intensos. Longos anos de completa escuridão e trabalho penoso. Perigo constante. Retorno duvidoso. Recomendações à família.