30.6.15

Irremediablemente...





claro que quero morrer antes de você
quem vai fazer a cena do moribundo no leito de morte
babujando as últimas palavras afogadas nas últimas lágrimas
quem vai jogar o último desejo nas suas costas
e partir para o nunca mais ver ciao
deixando tudo para trás
contas
chaves de casa
roupas usadas
livros mofados
tênis enlameados
maços vazios
lençóis úmidos
papéis desbotados
xampus abertos
traduções incompletas
poemas falados
desenhos infantis
o prato sem lavar
o porquinho cor de rosa
as tardes frescas
a frente do mar
os lindo-azuis na varanda
o perfume da nuca nos travesseiros
o Irremediablemente autografado da Storni
claro que quero
e antes de você
jogue fora tudo que veio e é seu
aquela sua mecha branca
os corredores do Estácio
meu muito amor
e um beijo distraído






26.6.15

par avion



26.06

Recebi sua correspondência hoje via sonho
deviam ser umas 9 e tanto pois acordei às 10
e tudo não passou de minutos
ver a sua caixa que veio pelo correio
abrir e dentro dela fotos antigas suas em P&B espalhadas
fotos ainda com margens serrilhadas de um tempo serrilhado
que não nos lembramos mais por inteiro
você comigo/ você com outros/ você com você
havia também 2 fotos grandes atuais de você
1 sentada à mesa do estúdio/ de perfil/
cabelos grisalhos/ trabalhando em meio
a papelada e peças/ muito concentrada/
a outra era você de pé/ corpo inteiro/ perfil/
abrindo um arquivo ou fazendo não sei/ coisas de
trabalho com arte documentos/ não pude definir
na caixa havia muito mais
quinquilharias afetivas de todo tipo de você
1 moeda grossa de prata envelhecida
com um relevo e ao lado o número 3
uma moeda de 3 reais? lembrei do Cildo
mas ao aproximá-la do foco
era um pingente em forma de moeda
o motivo de caixa tão grande devia ser pela
cúpula de luminária com motivos japoneses
protegida por plástico transparente que você mandou
e fiquei sem saber por quê
se era uma restituição ou só uma lembrança mesmo
você havia quebrado alguma cúpula minha?
pensei nessas coisas enquanto via
mais presentes seus indefiníveis dentro da caixa
você me deu coisas suas – só suas
você me deu você
fiquei confusa
fico confusa com presentes narcísicos
não sei de sua intenção com isso
depois de tanto tempo
receber seus pertences
como a viúva de um morto
sua letra inconfundível dentro do envelope
que enfim abri e de lá saiu uma tira longuíssima
de papel escrita com canetas de várias cores
onde você anotou frases soltas como numa
espécie de diário sem ordem cronológica
anotações de coisas que viveu e sentiu
em 197etal 1999 acho que não tinha nada recente
comecei a ler os garranchos com suas tristezas
mas fui interrompida por alguém que olhou
com pasmo aquele papel indo até o chão
já agora um plástico fino
sim uma carta/ sim uma artista
e escrevo agora para não esquecer
depois de tanto tempo
sua letra inconfundível
seus ais
sua caligrafia do meu nome
de você para mim – entre nós –
um mundo inteiro
par avion



25.6.15

[Esta areia que me cobre sem mormaço]




Esta areia que me cobre sem mormaço
escorre um pouco a cada minuto
A fumaça azul de um cigarro
arrasta o carrinho de mão até a casa
Na sala
um lustre acende e apaga de novo
E te vejo como és


24.6.15

Escrever é uma asfixia submissa




Escrever é uma asfixia submissa.
Um querer deter a alma que morria.
Mas lá vem você e diz,
A poesia é a sombra de um porco.
Converse com ela.



22.6.15

Poetas não me protegem de nada





O Homem-Aranha me protege
O Superman me protege
Também o Zorro
Tarzan
o Vigilante Rodoviário
e Bolinha e Luluzinha olham por mim
A todos peço proteção
em horas adversas
Meus cães me protegem
Deus larga meu espírito na porta
e eles o trazem para mim
embolado com os jornais de domingo
Meus cães são muito espirituais
suspiram mais do que eu
Não vou falar de santos
porque me dá catolicismo na pele
leva duas semanas para curar
Acho graça de quem torce tudo para o bem
um velho de crenças arraigadas é um sábio
uma cabeça quebrada é aprendizado
dá-me dó esta cabeça
o gazofilácio onde todo mundo
deposita sua esmolinha

Poetas não me protegem de nada
só no espelho da sala moram seis 
não há limpa-vidro que dê jeito
a vaidade inteira nem sempre se diz

Já você é a palavra mais complicada
Não é o balanço do trem, este prazer
São suas rodas premindo meus dormentes
Vamos ver se é verdade 
que quatro paredes
nos bastam





20.6.15

Wislawa Szymborska





Um terrorista: ele observa 


A bomba explodirá no bar às treze e vinte.
Agora são só treze e dezesseis.
Alguns ainda terão tempo de sair.
Outros de entrar.

O terrorista já se postou do outro lado da rua.
Essa distância o protege de todo mal
e acontece como no cinema:

Uma mulher de casaco amarelo: ela entra.
Um homem de óculos escuros: ele sai.
Uns jovens de jeans: eles conversam.
Treze e dezessete e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte, ele sobe numa moto,
mas aquele mais alto entra.

Treze e dezessete e quarenta segundos.
Uma menina: ela passa de fita verde no cabelo.
Só que um ônibus a encobre de repente.

Treze e dezoito.
Já não vemos a menina.
Se ela foi burra de entrar, ou não,
isso veremos quando tirarem os corpos de lá.

Treze e dezenove.
Agora parece que não entra mais ninguém.
Em vez disso, um gordo careca sai.

Mas parece procurar algo nos bolsos e
faltando dez segundos para as treze e vinte
ele volta para buscar suas malditas luvas.

São treze e vinte.
O tempo, como custa a passar.
Vai ser agora.
Ainda não.
Sim, agora.
Uma bomba: ela explode.



(trad. Maira Parula)





11.6.15

a poeta espera sentada na grama



a poeta espera sentada na grama

o que espera uma poeta sentada na grama

quem ela espera a poeta sentada na grama

você me espera sair da sessão de terapia

na frente da ala da psiquiatria tem uma grama igual

à da poeta que espera sentada na grama

eu me atraso porque tenho ainda o que aparar

a poeta continua a espera sentada na grama

bate a cinza do cigarro

olha pra direita

olha pra esquerda

fala sozinha

canta Fatal

a grama da poeta é igual

o prédio atrás da poeta é igual

desço a escada da portaria

e você me sorri de dentro do carro

a poeta foi embora

cansou de esperar tanto dia tanta hora

falta muito tempo pra gente se ver

na fotografia que eu vi






7.6.15

[Sabe-se lá]




Sabe-se lá o que tem dentro de uma almôndega
Sabe-se lá o que tem dentro das gentes
Há quem se apaixone por uma mulher de perfil
Uma orelha oculta
Um olho semicerrado
O abajur de canto

Sim sim
O tecido que cobre os ombros
A tinta azul
do que nasceu para ser desconhecido
Sabe-se lá




5.6.15

minha luz interior é de led




5 e meia da manhã. os cachorros me acordam pra sair. me viro pra acender o abajur e meu ombro estala. gemo alto. ele também não quer levantar. preciso parar de apoiá-lo na mesa de trabalho. ainda escuro, faço uns passos até a porta. abro e dou de cara com a lua por cima da jabuticabeira. uma perto da outra. mas não estão. os cachorros fazem suas funções. fico parada no frio. uma remota fome. bebe água que passa. não é hora de comer. galos cantam, cachorros latem. longe. muito bucolismo. acendo um cigarro para romper o cenário. os cachorros voltam. é cedo pra eles. perco o sono. 

seis e doze. amanheceu. a lua ainda mais perto da jabuticabeira. acho que vão virar uma só.

a cidade começa.

minha luz interior é de led.

6:39. a lua ainda está lá. espera o sol no seu canto do ringue.


6:49. a cachorrada toda saiu. vão confirmar território com seus pares vizinhos. fico só. vendo fotos. uma: o estofamento de uma poltrona azul lembra o de um esquife. quero luz de led dentro do meu. 

6:58. boa noite.




3.6.15

[fique]






O som do vento nos eucaliptos

O som do vento no bambuzal


A folha que balança sozinha no ar parado


O som do vento por baixo da porta


Não precisa chamar o médico


O vento é mesmo assim


Tem som de lençol seco


Tem som de lençol molhado


De areia atritada por passos


De areias vazias arrastadas


O vento nas vogais abertas


O vento nas vogais fechadas


Pega os papéis de minha mão


e os leva consigo para longe


Não precisa apanhar 


O vento que abafa o que digo


não é o mesmo ar que respiro


Não precisa chamar o médico


Fique e beba comigo


Toque baixinho a palha do garrafão