16.4.20

A mariposa negra





A mariposa negra estava ali. Espanto-a da almofada e ela cai no chão sem um movimento. Nada tremula. Observo por um tempo. As lendas me vêm à cabeça. Esqueço. Pego um papel macio e a recolho. Não aperto. Levo para o lixo no banheiro. Fecho a tampa. Vou dormir com a tristeza das últimas mortes e o alívio de que os amigos estão bem. Volto a reler A era dourada de Gore Vidal, o último volume de sua série Narrativas do Império. O que este livro me importa exatamente neste momento, além de eu ser uma apaixonada pelo autor? Nada, penso hoje de manhã enquanto volto ao banheiro para dispensar o que meu corpo acumulou durante a noite. Lavo as mãos. Escovo os dentes. Saio pela porta que dá no quarto e antes que eu me afaste, ouço um barulho estranho. Paro. Tento localizar. Volto ao banheiro. O barulho vem do cesto de lixo. Então é o que lembro. A mariposa negra está viva e se debate lá dentro. Abro a tampa e ela alça voo, confusa. Saltitando pelo chão. Abro a outra porta que dá para o mundo e a conduzo gentilmente com o pé. Ela toma um impulso e suas asas a tiram dali na direção do céu. Está livre. E viva. O ar fresco da manhã bate em meu rosto. Sinto um arrepio de deslumbramento e neste preciso momento eu poderia ilustrar a cena com uma música da Ashram, “Il Mostro”. E chorar. As mariposas negras vêm de muito longe. De Manchester. O negro é da fuligem das fábricas. A revolução industrial lhes deu a camuflagem. Uma mariposa negra não se entrega com facilidade. É uma mutante e passou por muitas batalhas. Cruzou oceanos. E me encontrou para dizer isso. Eu não estava ali. Ela me esperou e dormiu de cansaço na almofada. Não acordou com meu tapa. Algo dentro dela esperou o amanhecer.