A mariposa negra
estava ali. Espanto-a da almofada e ela cai no chão sem um
movimento. Nada tremula. Observo por um tempo. As lendas me vêm à cabeça.
Esqueço. Pego um papel macio e a recolho. Não aperto. Levo para o lixo no
banheiro. Fecho a tampa. Vou dormir com a tristeza das últimas mortes e o
alívio de que os amigos estão bem. Volto a reler A era dourada de
Gore Vidal, o último volume de sua série Narrativas do Império. O que este
livro me importa exatamente neste momento, além de eu ser uma apaixonada pelo
autor? Nada, penso hoje de manhã enquanto volto ao banheiro para dispensar o
que meu corpo acumulou durante a noite. Lavo as mãos. Escovo os dentes. Saio
pela porta que dá no quarto e antes que eu me afaste, ouço um barulho estranho. Paro. Tento
localizar. Volto ao banheiro. O barulho vem do cesto de lixo. Então é o que
lembro. A mariposa negra está viva e se debate lá dentro. Abro a tampa e ela
alça voo, confusa. Saltitando pelo chão. Abro a outra porta que dá para o mundo
e a conduzo gentilmente com o pé. Ela toma um impulso e suas asas a tiram dali
na direção do céu. Está livre. E viva. O ar fresco da manhã bate em meu rosto.
Sinto um arrepio de deslumbramento e neste preciso momento eu poderia ilustrar a
cena com uma música da Ashram, “Il Mostro”. E chorar. As mariposas negras vêm de
muito longe. De Manchester. O negro é da fuligem das fábricas. A revolução
industrial lhes deu a camuflagem. Uma mariposa negra não se entrega com
facilidade. É uma mutante e passou por muitas batalhas. Cruzou oceanos. E me
encontrou para dizer isso. Eu não estava ali. Ela me esperou e dormiu de
cansaço na almofada. Não acordou com meu tapa. Algo dentro dela esperou o amanhecer.