Pobre mas intelectual, não haveria no mundo razão mais pura que
disfarçasse aquele olharzinho ganancioso que ele me deu quando eu disse que
enfim o apresentaria a Luís Paulo. Luís Paulo era editor-chefe do único jornal
de grande tiragem de nossa cidade e, coincidentemente, meu primo, o que não me
trazia vantagem alguma, fiquem sabendo. Mas Pedro de Aquino não pensava assim.
Não identificarei aqui o jornal e a cidade e vou avisando logo que quaisquer
nomes citados são totalmente fictícios. Não quero que a esta altura da vida um
cretino desavisado, quase sempre um conterrâneo, me apareça só para me
desmentir quando não sabe da história nem a metade. Pois bem, digamos que Pedro
de Aquino, pobre mas intelectual, nasceu na periferia do cu de
onde-judas-perdeu-as-botas, que é a minha cidade. Mas
onde-judas-perdeu-as-botas se julga próspera porque tem indústria
autossustentada, universidade particular e imprensa escrita. Eu estudei em
escola pública e depois arrumei um emprego na indústria autossustentada. Pedro
de Aquino também estudou na escola pública mas conversou uma bolsa e foi para a
universidade particular, de onde não mais saiu porque Pedro de Aquino é
intelectual mas é pobre e precisa de arrimo acadêmico. Porém o salário de
intelectual de Pedro de Aquino é baixo e ele precisa de outros bicos para,
digamos assim, acompanhar os seus padrões. É onde entra Luís Paulo, meu primo
editor-chefe. Luís Paulo e eu somos diferentes da água pro vinho porque ele
além de rico também é intelectual enquanto eu estou pouco me lixando. Só que eu
e Luís Paulo temos algo em comum que nos aproxima mais do que afasta: a paixão
pelas corridas de cavalo. Antes de deixar claro que a nossa cidade também tem
um hipódromo, eu preciso dizer que hoje acordei com o coração acelerado porque é
dia de corrida e vou poder apostar na égua Maria-Mole que corre no..., vejamos,
3º páreo. Eu não preciso combinar nada com Luís Paulo, ele sabe que todo
domingo vai me encontrar ao lado da pista estudando os cavalinhos. Depois
seguimos para o bar e um encorpado intercâmbio de favoritos e azarões. E é lá
onde nós estamos agora, no bar. Só que eu não sei que Pedro de Aquino sabe que
Luís Paulo e eu somos viciados nos cavalos e batemos ponto no hipódromo.
Cansado de ouvir as minhas desculpas e promessas de que assim que puder eu o
apresento lógico a Luís Paulo, editor-chefe, meu primo, rico plus intelectual e
viciado em cavalos blá-blá-blá, Pedro de Aquino resolve ele mesmo fazer as
apresentações e parte pro hipódromo depois de engolir um almoço indigesto no trailer
do campus. Eu aposto sempre e somente no vencedor, mas Luís Paulo gosta de
cercar por todos os lados e, depois de cravar nos vencedores, derrama o resto
da sua fé e do seu salário de editor-chefe em duplas, trifetas, quadrifetas e o
prêmio especial do dia. E neste domingo não foi diferente. Como disse, estamos
lá no bar, esperando o 3º páreo, onde apostei todas as minhas fichas na
Maria-Mole. Minhas mãos estão suadas e mal conseguem segurar o copo. Luís Paulo
palita os dentes e ri da minha teimosia com os azarões. Diz que eu não tenho
critério, não tenho método, e que o amadorismo ainda vai me afundar. Eu afrouxo
a língua e o mando tomar no cu. Estou de bom humor. Estico o pescoço e avisto
Maria-Mole bufando no paddock. Ela vai conseguir. Os cavalos se encaminham para
a largada e Luís Paulo e eu nos aproximamos da janela envidraçada para
assistirmos à corrida dali mesmo. Com a tulipa na mão contemplo a pista de
areia e logo acima um céu carregado. Não pode chover agora. Atrás de mim, Luís
Paulo começa a falar qualquer coisa com algum conhecido mas meus olhos estão
fixos na pista e nas nuvens, nas nuvens e na pista. Na largada, Maria-Mole puxa
as rédeas, cabeceia, está nervosa. Meu corpo começa a tremer e o chope está
quente. Nestes momentos eu nunca bebo nem converso. Preciso de concentração
total para comunicar-me com o cavalo, para motivá-lo, este é o meu método,
coisa que Luís Paulo jamais entenderia. Ele continua disperso e conversando
atrás de mim. Não sei por que diz que gosta de cavalos. Ele apenas os usa para
testar a sua técnica no cálculo das probabilidades. É um adepto do turfe de
resultado. Eu não. Mas Luís Paulo é um intelectual e os intelectuais têm uma
técnica toda própria de nos convencer que é sempre a técnica deles que
prevalece. E falam demais também. Foi dada a largada e eu perco Maria-Mole de
vista. Na pista a poeira levanta e só consigo acompanhar pelos alto-falantes do
hipódromo. Luís Paulo não cala a boca e o tal sujeitinho que está com ele solta
uns muxoxos. Maria-Mole faz a curva final depois dos 100 metros e vem correndo
por fora. Minha blusa está molhada. Luís Paulo e o sujeito gargalham.
Maria-Mole ganha a segunda posição e avança rapidamente para a primeira. Isso
mesmo, menina. Você consegue. Aperto o bilhete na mão. Maria-Mole vai para o
cabeça com cabeça, faltam 50 metros agora, o suor pinga no meu olho esquerdo e
ela cruuuza a reta final. Eu sabia, eu sabia. Exultante, me viro para abraçar
Luís Paulo, que não apostou na égua, e vejo o meu amigo pobre mas intelectual
abraçando Luís Paulo. Você por aqui?, eu pergunto meio sem jeito mas sorrindo
ainda. Pedro diz que sim sem abrir a boca e meu primo me parabeniza pela
vitória, não sem antes me passar um sabão enquanto seguimos os três para os
guichês. Porra, por que você não me disse que tinha um amigo da universidade
precisando de trabalho? Eu estava justamente dizendo aqui pra ele que no
momento não temos vaga no caderno de cultura, mas como ele conhece línguas
mortas, eu poderia aproveitá-lo na redação de obituários, ahahah. Temos de
valorizar os talentos locais, você não acha? Pego a minha bolada, amarfanho
tudo no bolso de trás da calça e me despeço sem responder eu não acho nada,
quem ganha pra achar são vocês, té mais ver.