17.4.20

Uma tarde no turfe






Pobre mas intelectual, não haveria no mundo razão mais pura que disfarçasse aquele olharzinho ganancioso que ele me deu quando eu disse que enfim o apresentaria a Luís Paulo. Luís Paulo era editor-chefe do único jornal de grande tiragem de nossa cidade e, coincidentemente, meu primo, o que não me trazia vantagem alguma, fiquem sabendo. Mas Pedro de Aquino não pensava assim. Não identificarei aqui o jornal e a cidade e vou avisando logo que quaisquer nomes citados são totalmente fictícios. Não quero que a esta altura da vida um cretino desavisado, quase sempre um conterrâneo, me apareça só para me desmentir quando não sabe da história nem a metade. Pois bem, digamos que Pedro de Aquino, pobre mas intelectual, nasceu na periferia do cu de onde-judas-perdeu-as-botas, que é a minha cidade. Mas onde-judas-perdeu-as-botas se julga próspera porque tem indústria autossustentada, universidade particular e imprensa escrita. Eu estudei em escola pública e depois arrumei um emprego na indústria autossustentada. Pedro de Aquino também estudou na escola pública mas conversou uma bolsa e foi para a universidade particular, de onde não mais saiu porque Pedro de Aquino é intelectual mas é pobre e precisa de arrimo acadêmico. Porém o salário de intelectual de Pedro de Aquino é baixo e ele precisa de outros bicos para, digamos assim, acompanhar os seus padrões. É onde entra Luís Paulo, meu primo editor-chefe. Luís Paulo e eu somos diferentes da água pro vinho porque ele além de rico também é intelectual enquanto eu estou pouco me lixando. Só que eu e Luís Paulo temos algo em comum que nos aproxima mais do que afasta: a paixão pelas corridas de cavalo. Antes de deixar claro que a nossa cidade também tem um hipódromo, eu preciso dizer que hoje acordei com o coração acelerado porque é dia de corrida e vou poder apostar na égua Maria-Mole que corre no..., vejamos, 3º páreo. Eu não preciso combinar nada com Luís Paulo, ele sabe que todo domingo vai me encontrar ao lado da pista estudando os cavalinhos. Depois seguimos para o bar e um encorpado intercâmbio de favoritos e azarões. E é lá onde nós estamos agora, no bar. Só que eu não sei que Pedro de Aquino sabe que Luís Paulo e eu somos viciados nos cavalos e batemos ponto no hipódromo. Cansado de ouvir as minhas desculpas e promessas de que assim que puder eu o apresento lógico a Luís Paulo, editor-chefe, meu primo, rico plus intelectual e viciado em cavalos blá-blá-blá, Pedro de Aquino resolve ele mesmo fazer as apresentações e parte pro hipódromo depois de engolir um almoço indigesto no trailer do campus. Eu aposto sempre e somente no vencedor, mas Luís Paulo gosta de cercar por todos os lados e, depois de cravar nos vencedores, derrama o resto da sua fé e do seu salário de editor-chefe em duplas, trifetas, quadrifetas e o prêmio especial do dia. E neste domingo não foi diferente. Como disse, estamos lá no bar, esperando o 3º páreo, onde apostei todas as minhas fichas na Maria-Mole. Minhas mãos estão suadas e mal conseguem segurar o copo. Luís Paulo palita os dentes e ri da minha teimosia com os azarões. Diz que eu não tenho critério, não tenho método, e que o amadorismo ainda vai me afundar. Eu afrouxo a língua e o mando tomar no cu. Estou de bom humor. Estico o pescoço e avisto Maria-Mole bufando no paddock. Ela vai conseguir. Os cavalos se encaminham para a largada e Luís Paulo e eu nos aproximamos da janela envidraçada para assistirmos à corrida dali mesmo. Com a tulipa na mão contemplo a pista de areia e logo acima um céu carregado. Não pode chover agora. Atrás de mim, Luís Paulo começa a falar qualquer coisa com algum conhecido mas meus olhos estão fixos na pista e nas nuvens, nas nuvens e na pista. Na largada, Maria-Mole puxa as rédeas, cabeceia, está nervosa. Meu corpo começa a tremer e o chope está quente. Nestes momentos eu nunca bebo nem converso. Preciso de concentração total para comunicar-me com o cavalo, para motivá-lo, este é o meu método, coisa que Luís Paulo jamais entenderia. Ele continua disperso e conversando atrás de mim. Não sei por que diz que gosta de cavalos. Ele apenas os usa para testar a sua técnica no cálculo das probabilidades. É um adepto do turfe de resultado. Eu não. Mas Luís Paulo é um intelectual e os intelectuais têm uma técnica toda própria de nos convencer que é sempre a técnica deles que prevalece. E falam demais também. Foi dada a largada e eu perco Maria-Mole de vista. Na pista a poeira levanta e só consigo acompanhar pelos alto-falantes do hipódromo. Luís Paulo não cala a boca e o tal sujeitinho que está com ele solta uns muxoxos. Maria-Mole faz a curva final depois dos 100 metros e vem correndo por fora. Minha blusa está molhada. Luís Paulo e o sujeito gargalham. Maria-Mole ganha a segunda posição e avança rapidamente para a primeira. Isso mesmo, menina. Você consegue. Aperto o bilhete na mão. Maria-Mole vai para o cabeça com cabeça, faltam 50 metros agora, o suor pinga no meu olho esquerdo e ela cruuuza a reta final. Eu sabia, eu sabia. Exultante, me viro para abraçar Luís Paulo, que não apostou na égua, e vejo o meu amigo pobre mas intelectual abraçando Luís Paulo. Você por aqui?, eu pergunto meio sem jeito mas sorrindo ainda. Pedro diz que sim sem abrir a boca e meu primo me parabeniza pela vitória, não sem antes me passar um sabão enquanto seguimos os três para os guichês. Porra, por que você não me disse que tinha um amigo da universidade precisando de trabalho? Eu estava justamente dizendo aqui pra ele que no momento não temos vaga no caderno de cultura, mas como ele conhece línguas mortas, eu poderia aproveitá-lo na redação de obituários, ahahah. Temos de valorizar os talentos locais, você não acha? Pego a minha bolada, amarfanho tudo no bolso de trás da calça e me despeço sem responder eu não acho nada, quem ganha pra achar são vocês, té mais ver.