29.4.20

Soberana




Uma de minhas comorbidades é essa teimosia antiga de perder tempo lendo autobiografias de celebridades mundiais das artes cênicas. Então, quando digo que a vida alheia não me interessa, isso pode ser uma meia-verdade, sendo que a verdade inteira que a recobre é que não me interessa mesmo um pepino. Cinema e teatro sempre me interessaram, tenho vários livros teóricos sobre o assunto, mas esticar até autobiografias em geral inúteis é meio doentio. Falo de autobiografias, aquelas em que todo mundo é santo. Você começa a ler e passadas umas 15 páginas já vê que daquela fruta só vai pular caroço. No entanto, às vezes me deparo com uma reminiscência aproveitável. Exemplo, fiquei sabendo que as vidraças dos prédios do Cais do Porto, na Praça Mauá, estavam quebradas há décadas muito antes de eu passar por lá pela primeira vez num ônibus a caminho do trabalho. Um dos meus vícios era namorar os gigantescos navios aportados, a sequência de armazéns decadentes fechados com seus bêbados ocasionais dormindo sob a marquise num dia de sol febril. As escolas públicas que frequentei também ficaram décadas com vidraças quebradas, não só quando eu estava lá dentro sendo torturada. Já adulta você passa na frente e dá aquela tristeza de que o tempo não virou a página. O passado está sólido e você ainda brinca de pique lá dentro. Daí, resolvo dar mais uma chance ao livro e continuo lendo até uma angústia tomar-me o esôfago com  tanta conversa oca. Não rasguei o livro porque era e-book. A tecnologia sempre nos tirando os pequenos prazeres da barbárie. Para curar-me desta ressaca tomo um Bloody Mary 500 ml de Sam Shepard e Roberto Arlt. O confinamento nos serve para imaginar uma nova nomenclatura ao calendário, mandando às favas Júlio César e Gregório XIII, astronomicamente incorretos. O mês 11 afinal não pode ser chamado de Novembro, e sim de Onzembro. Novembro deve ser o mês 9, passando Setembro a ser o antigo Julho. O mês 10 aí sim, é Dezembro, e não Outubro. O mês 12, Dozembro, e assim por diante. Talvez um dia eu abocanhe o prêmio Veuve Clicquot (garrafa Soberana de 25 litros) por meu empreendedorismo na “Nichtigkeit des Daseins”.