13.12.12

Edifício Danville


101
Filho da puta! Egoísta! Bêbado! Débil mental! Uma porta bate e os gritos cessam.  Ouço o elevador sacudindo pelo poço e o cheiro de charuto cubano se espalha pelos corredores. Hoje a mulher não dorme.

102
Ao lado é o silêncio. O neto deve estar plantado no boteco da esquina e os avós mochileiros já foram dormir. Amanhã o alarme despertará às seis para o trekking diário dos velhos. O vagabundo continuará desmaiado na frente da TV ligada.

103
A fumaça de gordura frita sobe pelo fosso e invade meu apartamento sem desperdiçar um cômodo. Não demoro a detectar e identificar o prato do dia.  Uma nojenta carne de vaca.  Avanço pela cozinha, me estico no peitoril e jogo uma casca de banana podre na área do 103.  Neste prédio reina a educação pela pedra.  Eles deviam me agradecer de a minha não quebrar-lhes os vidros.

104
Ali mora um casal de amigos meus. Eu é que os avisei de que o imóvel estava para alugar. O que aconteceu há uns três ou quatro meses. Eles nunca me visitam. De vez em quando me convidam para descer e jantar caranguejo porque sabem que sou alérgica. Jogamos canastra. Com as mãos inchadas, sempre demoro a bater.


 201
Lésbicas. Duas. Demorei a entender a dinâmica do entra e sai, pois, ao contrário do que pode parecer, sou muito distraída. Festas de sábado só com mulheres, rindo e saindo pelas caixas de som. Ocupando todo o quadro da janela. Eu não conseguia ler nem dormir. Se tivesse o telefone do coronel, ligava. O coronel aparecia toda tarde de quarta-feira no 201. Uma das moradoras abria a porta. A mesma sempre. Depois abaixava a persiana. Uma hora mais tarde ele ia embora com seus cabelos brancos amassados. Na fronha, o cheque do aluguel. A outra voltava à noitinha. Unhas vermelhas cansadas do trabalho. Morar no Rio sempre sai mais caro do que o combinado.

202
Então foi ela. Semanas atrás desci do táxi bêbada e puxei uns trocados do bolso da calça apertada. Na confusão perdi o que nunca mais encontrei. Ontem ela tocou a campainha me pedindo uma cebola e comentou titilando o piercing da língua que adorava morar naquele prédio porque só tinha doidão. Imagine você que até papelote de cocaína já achei no chão da portaria. Era minha última cebola.

203
Divido este apartamento com um colega de faculdade. Ele quase não para em casa e pisa forte, o que me dá nos nervos. Fora isso, é uma boa companhia. Detesta jogar baralho, como eu. Não leva ninguém para trepar em domicílio, nem pede emprestado meus livros ou fuça minhas coisas. Filósofo amador, traz pizza de pepperoni para temperar nossas conversas até de manhã. Meu estômago me diz que não ficará muito tempo por aqui.


204
A maçaneta da porta é imaculadamente limpa. Por isso nunca confundo as nossas portas. Mãe, pai e filha. Às vezes sinto cheiro de galinheiro quando enfio a chave na minha fechadura.  Nunca se sabe o que acontece atrás de uma porta com maçaneta imaculadamente limpa.

Elevador

Estou lendo a biografia do Strauss.
O das valsas?
Não.
O das calças?
Nããão, sua zebra. O das estruturas.
Ah.

301
Este está vago. Os vizinhos se mudaram depois que o apartamento pegou fogo e eles perderam tudo. Acompanhei o trabalho dos bombeiros. Não havia muita coisa para perder. Achei uma harmônica Hohner debaixo de um colchonete queimado no quarto de empregada. Aprendi a tocá-la em pouco tempo. Originalmente as gaitas eram o castigo para quem perdia torneios de poesia. Acho justo.

302
Você sabe com quem está falando? Eu sou Fulano de Tal! Fulano de Tal!, gritava o famoso contrabaixista antes de comer a mulher de porrada. A polícia chegava em quinze minutos para pôr um fim naquela jam session. Eu nunca ouvira falar no Fulano de Tal!, nem os vizinhos nem a polícia, quem sabe por isso mesmo é que suas brigas com a mulher tinham de começar sempre com uma apresentação do seu CV ao distinto público. Ele tocava em pequenos bares da moda, pesquisei. A mulher pagava colcheias e semicolcheias e não recebia o mesmo tratamento carinhoso que as cordas. Com o casamento nasce o bebop.


303
O filho adolescente tem um topete e canta Elvis no chuveiro. Da coleção de vinis do pai é o preferido. A mãe tem uma voz medonha. O corredor do terceiro andar cheira a mijo de gato. Eles não têm gato. Numa manhã de sábado sou acordada pela campainha disfêmica. A Medonha no olho mágico. Abro a porta e de um jato entra a família inteira na minha sala, assessorada por dois assaltantes. Um deles aponta o cano de um 38 para a minha cabeça. A Medonha grita. O ladrão grita. Todos pro banheiro de empregada. Que é mínimo. O ladrão armado fica na sala ouvindo Clara Nunes enquanto o outro revista meu apartamento. Depois de uma hora eu continuo suando imprensada pelos Medonhos em volta da privada. O ladrão só gosta de Clara Nunes, só ouve Clara Nunes, e eu só tenho um disco de Clara Nunes. Se este garoto cantar Love me Tender aqui, eu acabo com a raça dele. Qual de vocês cheira a mijo de gato?, eu tinha de saber. A Medonha começa a chorar. Calem a boca vocês aí!, disse o Nunes entre uma música e outra. Não tem nada na porra desta casa, vamos vazar, disse o outro. A porta bate. Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela. Alguém nos destranca minutos depois. Um vizinho chamou a polícia. Minhas mochilas cheias de quinquilharias são devolvidas intactas. Perdi um relógio e um isqueiro extra-fino de ouro falso. Os Medonhos voltaram para o 303 sem sequer me dar uma satisfação do mijo de gato. Vou levantar este tema na próxima assembleia geral do condomínio.


304
Filho adulto solteiro mora com mãe divorciada. A solidão da mãe continua igual. Pegou um pug para criar. O pug desce de escada. Não temos elevador de serviço. A boa alimentação é a preocupação básica das mães. Todo dia o filho come uma gema crua de ovo equilibrada numa colher de sopa. Eu brinco com o pug e ela me chama para ver o saxofone do filho. Abre o estojo com orgulho materno e espera que eu abane o rabo. É um belo instrumento. Ele toca? Ah, sim, mas não aqui. Não pra mim. É um prédio muito musical o nosso, penso, fechando o estojo. O pug me encara com tristeza esbugalhada.

401
O quarto andar é o mais sombrio. Talvez porque ninguém passe por lá. Quem vai fica. Entra em uma de suas quatro bocas. Como a poeta que vivia aqui antes de eu vir morar neste edifício. O 401 está fechado há cinco anos. Não tem ninguém lá dentro. A família não vende, não aluga, não empresta. Ninguém viu o corpo da suicida sendo levado. Por isso há uma lenda de que ela ainda está lá. E esta lenda passa de morador para morador. De um edifício para outro. Como os canos de esgoto.

402
O velho aposentado mora sozinho. Abandonado pela família, dizem as escadas. Sofre do coração. Não pode beber, não pode fumar e deve sonhar com a mulher todas as noites. Eu ainda posso beber, posso fumar e às vezes sonho que ele morre dormindo sonhando com a minha mãe.

403
Aqui mora alguém que eu nunca vi, mas sei que existe. Sinto seu perfume lá do meu andar. No elevador que desce vazio. Ouço um choro baixinho e muito longe. Não vou bater em sua porta, embora saiba que é a mim que espera a vida inteira.

404
A síndica. Eu não vou falar da síndica. Transfiro a outrem os poderes de representação desta laia. Quem quiser que me aplique as multas previstas no Regimento Interno.