101
Filho da puta! Egoísta! Bêbado! Débil mental! Uma porta bate e os gritos cessam. Ouço o elevador sacudindo pelo poço e o
cheiro de charuto cubano se espalha pelos corredores. Hoje a mulher não dorme.
102
Ao
lado é o silêncio. O neto deve estar plantado no boteco da esquina e os avós
mochileiros já foram dormir. Amanhã o alarme despertará às seis para o trekking
diário dos velhos. O vagabundo continuará desmaiado na frente da TV ligada.
103
A
fumaça de gordura frita sobe pelo fosso e invade meu apartamento sem
desperdiçar um cômodo. Não demoro a detectar e identificar o prato do dia. Uma nojenta carne de vaca. Avanço pela cozinha, me estico no peitoril e
jogo uma casca de banana podre na área do 103.
Neste prédio reina a educação pela pedra. Eles deviam me agradecer de a minha não
quebrar-lhes os vidros.
104
Ali
mora um casal de amigos meus. Eu é que os avisei de que o imóvel estava para
alugar. O que aconteceu há uns três ou quatro meses. Eles nunca me visitam. De
vez em quando me convidam para descer e jantar caranguejo porque sabem que sou
alérgica. Jogamos canastra. Com as mãos inchadas, sempre demoro a bater.
201
Lésbicas.
Duas. Demorei a entender a dinâmica do entra e sai, pois, ao contrário do que
pode parecer, sou muito distraída. Festas de sábado só com mulheres, rindo e
saindo pelas caixas de som. Ocupando todo o quadro da janela. Eu não conseguia
ler nem dormir. Se tivesse o telefone do coronel, ligava. O coronel aparecia
toda tarde de quarta-feira no 201. Uma das moradoras abria a porta. A mesma
sempre. Depois abaixava a persiana. Uma hora mais tarde ele ia embora com seus
cabelos brancos amassados. Na fronha, o cheque do aluguel. A outra voltava à noitinha. Unhas vermelhas cansadas
do trabalho. Morar no Rio sempre sai mais caro do que o combinado.
202
Então
foi ela. Semanas atrás desci do táxi bêbada e puxei uns trocados do bolso da
calça apertada. Na confusão perdi o que nunca mais encontrei. Ontem ela tocou a
campainha me pedindo uma cebola e comentou titilando o piercing da língua que
adorava morar naquele prédio porque só tinha doidão. Imagine você que até papelote
de cocaína já achei no chão da portaria. Era minha última cebola.
203
Divido
este apartamento com um colega de faculdade. Ele quase não para em casa e pisa
forte, o que me dá nos nervos. Fora isso, é uma boa companhia. Detesta jogar
baralho, como eu. Não leva ninguém para trepar em domicílio, nem pede
emprestado meus livros ou fuça minhas coisas. Filósofo amador, traz pizza de
pepperoni para temperar nossas conversas até de manhã. Meu estômago me diz que
não ficará muito tempo por aqui.
204
A
maçaneta da porta é imaculadamente limpa. Por isso nunca confundo as nossas
portas. Mãe, pai e filha. Às vezes sinto cheiro de galinheiro quando enfio a
chave na minha fechadura. Nunca se sabe
o que acontece atrás de uma porta com maçaneta imaculadamente limpa.
Elevador
Estou
lendo a biografia do Strauss.
O
das valsas?
Não.
O
das calças?
Nããão,
sua zebra. O das estruturas.
Ah.
301
Este
está vago. Os vizinhos se mudaram depois que o apartamento pegou fogo e eles
perderam tudo. Acompanhei o trabalho dos bombeiros. Não havia muita coisa para
perder. Achei uma harmônica Hohner debaixo de um colchonete queimado no quarto
de empregada. Aprendi a tocá-la em pouco tempo. Originalmente as gaitas eram o
castigo para quem perdia torneios de poesia. Acho justo.
302
Você
sabe com quem está falando? Eu sou Fulano de Tal! Fulano de Tal!, gritava o
famoso contrabaixista antes de comer a mulher de porrada. A polícia chegava em
quinze minutos para pôr um fim naquela jam session. Eu nunca ouvira falar no
Fulano de Tal!, nem os vizinhos nem a polícia, quem sabe por isso mesmo é que
suas brigas com a mulher tinham de começar sempre com uma apresentação do seu
CV ao distinto público. Ele tocava em pequenos bares da moda, pesquisei. A
mulher pagava colcheias e semicolcheias e não recebia o mesmo tratamento
carinhoso que as cordas. Com o casamento nasce o bebop.
303
O
filho adolescente tem um topete e canta Elvis no chuveiro. Da coleção de vinis
do pai é o preferido. A mãe tem uma voz medonha. O corredor do terceiro andar
cheira a mijo de gato. Eles não têm gato. Numa manhã de sábado sou acordada
pela campainha disfêmica. A Medonha no olho mágico. Abro a porta e de um jato entra
a família inteira na minha sala, assessorada por dois assaltantes. Um deles
aponta o cano de um 38 para a minha cabeça. A Medonha grita. O ladrão grita.
Todos pro banheiro de empregada. Que é mínimo. O ladrão armado fica na sala
ouvindo Clara Nunes enquanto o outro revista meu apartamento. Depois de uma
hora eu continuo suando imprensada pelos Medonhos em volta da privada. O ladrão
só gosta de Clara Nunes, só ouve Clara Nunes, e eu só tenho um disco de Clara
Nunes. Se este garoto cantar Love me Tender aqui, eu acabo com a raça dele. Qual
de vocês cheira a mijo de gato?, eu tinha de saber. A Medonha começa a chorar. Calem
a boca vocês aí!, disse o Nunes entre uma música e outra. Não tem nada na porra
desta casa, vamos vazar, disse o outro. A porta bate. Será que ela mexe o
chocalho ou o chocalho é que mexe com ela. Alguém nos destranca minutos depois.
Um vizinho chamou a polícia. Minhas mochilas cheias de quinquilharias são
devolvidas intactas. Perdi um relógio e um isqueiro extra-fino de ouro falso. Os
Medonhos voltaram para o 303 sem sequer me dar uma satisfação do mijo de gato. Vou
levantar este tema na próxima assembleia geral do condomínio.
304
Filho
adulto solteiro mora com mãe divorciada. A solidão da mãe continua igual. Pegou
um pug para criar. O pug desce de escada. Não temos elevador de serviço. A boa
alimentação é a preocupação básica das mães. Todo dia o filho come uma gema
crua de ovo equilibrada numa colher de sopa. Eu brinco com o pug e ela me chama
para ver o saxofone do filho. Abre o estojo com orgulho materno e espera que eu
abane o rabo. É um belo instrumento. Ele toca? Ah, sim, mas não aqui. Não pra
mim. É um prédio muito musical o nosso, penso, fechando o estojo. O pug me
encara com tristeza esbugalhada.
401
O
quarto andar é o mais sombrio. Talvez porque ninguém passe por lá. Quem vai
fica. Entra em uma de suas quatro bocas. Como a poeta que vivia aqui antes de
eu vir morar neste edifício. O 401 está fechado há cinco anos. Não tem ninguém
lá dentro. A família não vende, não aluga, não empresta. Ninguém viu o corpo da
suicida sendo levado. Por isso há uma lenda de que ela ainda está lá. E esta
lenda passa de morador para morador. De um edifício para outro. Como os canos
de esgoto.
402
O
velho aposentado mora sozinho. Abandonado pela família, dizem as escadas. Sofre
do coração. Não pode beber, não pode fumar e deve sonhar com a mulher todas as
noites. Eu ainda posso beber, posso fumar e às vezes sonho que ele morre
dormindo sonhando com a minha mãe.
403
Aqui
mora alguém que eu nunca vi, mas sei que existe. Sinto seu perfume lá do meu
andar. No elevador que desce vazio. Ouço um choro baixinho e muito longe. Não
vou bater em sua porta, embora saiba que é a mim que espera a vida inteira.
404
A
síndica. Eu não vou falar da síndica. Transfiro a outrem os poderes de
representação desta laia. Quem quiser que me aplique as multas previstas no
Regimento Interno.