3.4.13

Mais longe que o olho






A segunda gaveta da esquerda é a dos botões. Posso pegá-los até no escuro. O gaveteiro tem 30 unidades distribuídas em 5 colunas de 6. Abertura horizontal. Com fendas frontais. Sem emendas. Gaveteiro de farmácia, antigo, anos 1940, refugo da guerra. Ninguém se apresentou no leilão. Eu arrematei. Condições de preservação razoáveis, verniz descascado, algumas empenas e arranhões superficiais na madeira. Mas as gavetas estão ali, trinta, seus puxadores torneados intactos. Não sei por que ninguém quis. É dessas coisas que não se explica. Talvez porque o gaveteiro passou tanto do tempo, que o tempo não vai mais embora.  Não dá mais sombra.  O certo é que estivesse predestinado a mim. À minha cabeceira. Como se eu quisesse guardar ali o que não caberia na minha cabeça. Lixei, pintei. Duas mãos. Deixei secar, que é a melhor parte de tudo. O cheiro da tinta esvanecendo a cada minuto até não sobrar nada. Cheiro bom some depressa. Cheiro ruim só faz aumentar. Não tenho uma gaveta preferida, já que não me fixo na importância do que está lá dentro guardado. Nem sempre o guardado é o que se procura. Às vezes se guarda para não ver. Tem só de estar ali para esquecer. Jogar fora é um risco que você não quer. Lembrança longe aumenta. Começa a imaginar coisas se intocada. Úteis ou inúteis. Não guardo coisas arrancadas ao mar, por exemplo. Dão azar. Cartas de amor, queimei. Que descuido.  Sobrou um bilhetinho de intenso rubor: "C'est une bossa nova que j'ai dansée avec toi." Moedas, ah, sim, moedas. A história contada em aço, pela força da batida. Falo no gaveteiro agora porque espero um telefonema e todos almoçam. Entre paredes de ladrilho, seus olhares não vão mais longe que o olho. Ninguém me vê quando me fecho.