A segunda gaveta da
esquerda é a dos botões. Posso pegá-los até no escuro. O gaveteiro tem 30
unidades distribuídas em 5 colunas de 6. Abertura horizontal. Com fendas
frontais. Sem emendas. Gaveteiro de farmácia, antigo, anos 1940, refugo da
guerra. Ninguém se apresentou no leilão. Eu arrematei. Condições de preservação
razoáveis, verniz descascado, algumas empenas e arranhões superficiais na
madeira. Mas as gavetas estão ali, trinta, seus puxadores torneados intactos.
Não sei por que ninguém quis. É dessas coisas que não se explica. Talvez porque
o gaveteiro passou tanto do tempo, que o tempo não vai mais embora. Não
dá mais sombra. O certo é que estivesse predestinado a mim. À minha
cabeceira. Como se eu quisesse guardar ali o que não caberia na minha cabeça.
Lixei, pintei. Duas mãos. Deixei secar, que é a melhor parte de tudo. O cheiro
da tinta esvanecendo a cada minuto até não sobrar nada. Cheiro bom some
depressa. Cheiro ruim só faz aumentar. Não tenho uma gaveta preferida, já que
não me fixo na importância do que está lá dentro guardado. Nem sempre o
guardado é o que se procura. Às vezes se guarda para não ver. Tem só de estar
ali para esquecer. Jogar fora é um risco que você não quer. Lembrança longe
aumenta. Começa a imaginar coisas se intocada. Úteis ou inúteis. Não guardo
coisas arrancadas ao mar, por exemplo. Dão azar. Cartas de amor, queimei. Que
descuido. Sobrou um bilhetinho de intenso rubor: "C'est une bossa
nova que j'ai dansée avec toi." Moedas, ah, sim, moedas. A história
contada em aço, pela força da batida. Falo no gaveteiro agora porque espero um
telefonema e todos almoçam. Entre paredes de ladrilho, seus olhares não vão
mais longe que o olho. Ninguém me vê quando me fecho.