Sonya passa com cuidado pelo fogareiro para não queimar a fralda da camisa, mas o carvão aceso atinge sua calça no joelho.
Começa por uma chama pequena no pano que vai se espalhando em duas direções opostas numa linha reta. Descendo e subindo pela perna.
Sonya lembra bem.
Seus gritos.
Sonya busca alguém para acudir.
Quer arrancar a calça o mais rápido que pode. Mas é tarde.
Quando a chama enfim consegue ser debelada, Sonya precisa baixar devagar a calça colada em sua pele queimada.
Sonya desce o pano pouco a pouco, centímetro por centímetro. Junto com a calça sua pele vai saindo também.
A pele em linha reta.
Uma avenida de carne viva do alto da coxa ao peito do pé.
Sonya lembra.
Não lembra da dor.
A calça é azul-escura. Sintética.
O fogo era o que os animais conhecem e temem.
E havia uma música.
Prelúdio e fuga.
Sonya vira lentamente a cabeça para o céu.
Varsóvia.
Ela reconhece aquele céu entre todos os outros dispostos ao seu lado. Reconheceria até de olhos fechados.
A linha reta em carne viva é uma fila de corpos.
Sonya está entre vozes e corpos empurram o seu.
Quer proteger a perna mas a ferida não há mais.
É o estômago que arde. Que cola em suas costas. Que não sai de dentro dela. Que não pode ser apagado.
O sonho indica o caminho quando ela não consegue ver mais o passado.
A massa do gás se contrai, se autoaquece e forma o embrião de uma nova estrela. Uma nuvem molecular gigante e assustadora. Quanto mais a nuvem se contrai, mais a temperatura aumenta.
Seu pai está falando das protoestrelas.
Sonya lembra. Uma canção de ninar.
Isto teria uma importância muito maior se fosse vigília, porque todo sonho apaga o sonhador.
No sonho, ela nada pode fazer.
Está paralisada na fila de imagens em sucessão.
Imóvel na rotação em torno do centro, onde a morte está ali -- na sombra.