30.12.15
Sandro Penna
A porta do mundo não sabe
que lá fora a chuva a procura.
A procura. A procura.
Paciente, se perde, retorna.
A luz não sabe da chuva.
A chuva não sabe da luz.
A porta do mundo está fechada:
cerrada à chuva,
cerrada à luz.
("Le porte del mondo non sanno", trad. Maira Parula, 2015.
A opção pelo singular "a porta" e não "as portas"
foi intencional.)
19.11.15
Banco de espera da Psiquiatria
Quando topamos com
alguém no banco de espera da Psiquiatria, não dá para saber o que aquele
indivíduo lê, e se chega a ler. Em Berlim 1940 só eram permitidos banhos aos
sábados e domingos. Neste século não está muito diferente, por motivos
climáticos que entendo pouco. Vejo que Toy chegou cedo. Toy gosta de ler
relatos e diários de guerra. Biografias de senhores das duas guerras mundiais.
Toy não é o seu nome verdadeiro, que desconheço. É o nome do cachorro que
passeia entre um banco e outro da Psiquiatria. Fico encarando Churchill de
páginas abertas nas mãos de Toy, como se suas mãos fossem uma relíquia
hipnótica de Dardanelos que eu perdi. Imagino se Toy diverte o psiquiatra com
anedotas de campanha, ou se abre a lista de baixas que tem na memória. Olho as
revistas ilustradas. Normalmente não gosto de livros de mais de trezentas
páginas. Não tenho tempo. Preciso de trens expressos de alta velocidade.
Acumular milhas de história é bagagem incômoda. E além do mais são pesados.
Abrem o meu pulso. Mas hoje Toy está de banho tomado. Terei de esperar a sua
consulta e só depois será a minha vez. Pedirei um café à antipática cordial da
padaria ao lado enquanto espero essa vez. Abrirei o meu bloco de anotações e
verei qual tema da minha vida devo abordar hoje. Isso se o psiquiatra não
começar a falar da própria vida metade da consulta, o que anoto assim que saio
para comparar com a minha até que o perigo passe. Elza se ofereceu para vir me
buscar, não vale a pena. Posso me confundir. Elza é muito bonita, e sabe contar
minúcias das mortes como numa rodada de fotografias. Identificar corpos.
Embalsamar. O cheiro da sua água-de-colônia pode me realocar. Preciso ficar só
depois das sessões. Ver se ainda estou viva. Se o prédio não desabou arrastando
o meu mínimo necessário. Telefonar para mim mesma e me tranquilizar. Enquanto
isso, Toy já estará em casa, são e salvo. Quem sabe lendo mais um capítulo de
Churchill antes de capotar no seu colchão seco. Aprendendo russo on-line.
Fritando batatas. Inventando pretextos para cada circunstância. Ou tomará outro
banho depois de conspirar pelo telefone. Toy fecha o livro e cruza os braços.
Está impaciente com a demora. Já não se concentra na leitura, como eu me
concentro nele. Tão amigos antes da guerra.
13.11.15
31.10.15
Poesia
Eu não sei perseguir
uma pulga
colocar na unha
esmigalhar.
Espero que ela salte
pego
sufoco entre os dedos
até ela esquecer que é pulga
até eu esquecer que é pulga
até eu esquecer que estou
olhando pela janela
e escrevo
estou com uma pulga entre os dedos.
Todo poeta é um picareta
alguns com pulgas gordas
outros com pulgas anêmicas.
Pela janela todos plantam alfaces.
24.10.15
1 poema de André de Leones
Amar
para Maira
dizia
até ontem não saber que Armand Amar
nasceu em Jerusalém
ele nasceu aqui, sabia?
estávamos na varanda
ela fumava Marlboros, eu bebia Goldstar
o sharav abatendo Jerusalém
tudo aqui ganha uma dimensão bíblica
cada bloco de concreto uma hipérbole
eu bebi um gole e concordei com a cabeça
não disse nada
gostava de ouvi-la
Armand Amar nasceu em Jerusalém
repetiu
num tempo em que ainda se nascia em Jerusalém
e hoje? perguntei
hoje?
ela sorriu, tragou fechando os olhos
hoje só se morre
em Jerusalém
(André de Leones, 22.10.2015)
22.10.15
Só uma vez - Videopoema - Maira Parula
(Música: Armand Amar, “City of the Birth”.
Vídeo de domínio público dos Prelinger Archives:
demolição do Star Theatre, Nova York, 1901,
direção de Frederick S. Armitage.)
21.10.15
17.10.15
16.10.15
Só uma vez
Ela bate à máquina freneticamente, sorrindo, olhos fixos nos
seus tipos.
Parece ouvir uma voz muito longe de casa
e apressa-se em registrar o que ninguém disse.
Nesses momentos não se sente responsável por mim.
Estou na poltrona ao seu lado.
Vejo-a de baixo.
Seu pescoço fino.
Uma mecha de cabelo preto caindo na testa.
A pulseira dourada subindo e descendo no pulso.
Não adianta eu querer chamar sua atenção.
Barganhar ausências de um escuro já vencido.
Comentar que o dr. Martin ligou e pediu-lhe para ligar
depois.
Quer trocar o horário da consulta.
Dizer desse tempo tão seco nosso que arde o gramado lá
fora.
Dar uma caminhada e voltar amanhã.
Ela bate e bate, inventando enfermidades e desgraças.
A cada segundo treme o relógio atrás do seu ombro direito
nu.
Às vezes ela para e me pergunta a capital de um país
remoto.
Respondo e a máquina se enfurece outra vez.
Ouço suas aulas de canto.
Suas traições com periódicos, revistas, livros.
Seu rifle de caça.
Ela me quer num estado vegetativo ereto.
Que eu não perturbe nunca suas horas azuis.
Os poemas que tem encharcados na cabeça.
Os ensaios do seu espírito.
Eu gostaria de encostar o ouvido na sua boca.
Dentro do seu animal.
Dos seus móveis pesados.
Eu gostaria que ela parasse de brincar de não nos vermos.
Gostaria.
Que nos preparássemos para começar a vida toda de novo.
Só uma vez.
4.10.15
Não fui eu que pedi
-- Vamos ver o que temos aqui.
Não fui eu que pedi. Ele quis ler.
O copo de água gelada suava em sua mesa. Ele abriu o caderno espiralado. Acendi um cigarro e fui até a janela do oitavo andar. Havia um comício lá embaixo. Um bando de cem com bandeiras de algo que pouco me importa. As janelas do antigo escritório eram gradeadas. Não pude nem descansar os cotovelos no peitoril. Mal vi o céu. Ouvia só sua respiração. Toda vez que alguém respira sinto falta de ar. Dois maços de ar. O cigarro ia acabar e ele ainda estava de cabeça virada para o tampo da mesa. Virava as folhas do meu livro devagar, puxava os óculos para a ponte. Atrás dele uma estante. Fui até lá. No caminho não bati as cinzas no cinzeiro da mesa. Joguei no chão atrás dele, fingindo olhar lombadas. Nada que me interessasse. Cartas Celestes, Zen budismo, Figures de Lukacs, Bertrand Russell, Contradições culturais do ca... um globo de vidro. Suspirei. Apaguei a guimba na palma da mão direita. No silêncio sem dor. Um mamilo começou a coçar. Não cocei. Fiquei esperando a sensação aumentar até ficar insuportável. O celular vibrou na mochila. Abri e desliguei sem nem ver a tela. Ele agora folheava mais depressa. Quando esse movimento acelerou, olhei por cima do seu ombro para saber em que parte do livro ele estava. Quase no meio. Que poemas eu havia colocado no meio mesmo? Aproximei-me do encosto de sua cadeira e fixei-me no caderno. Low-down. Ele lia Low-down agora. Na certa vai me sugerir um título em português. Ou título nenhum. De longe reli o poema. Quando acabei de passar os olhos no quinto verso, meu olhar escapuliu para a direita. Para o polegar que segurava a folha. Para a unha do polegar que segurava a folha bem no quinto verso. Aquele dedo branco, curto, grosso e de unha roída. Uma unha podre. Levantada, oca, amarelo-escura como catarro. Esse tempo todo ele passou aquela unha pelos meus poemas. Não sabia dos outros dedos por baixo da folha. Dos dedos que apertaram minha mão quando cheguei às 15h30 em ponto no escritório da editora. Sinto um bolo no estômago e volto para a janela, quero respirar. O comício chega ao fim. A pequena multidão se dispersa lentamente. A unha podre sobre os meus poemas. O ponto de ônibus começa a encher. Ele gira na cadeira. Estou de calça jeans e mangas compridas vermelhas. Olho minhas unhas. Um pouco roídas, mas perfeitas. Limpas. Quase transparentes. Ele me chama, ergo rápido a cabeça e sinto uma leve vertigem. Não sei se aquela unha fede. Se vou levar de volta para casa aquelas páginas fedidas. O ônibus enfim aparece e ele me estende o caderno sem um comentário. Não quero olhar. Jogo os poemas na mochila e fecho. Ele recosta-se na cadeira, toma um gole de água, olha para o teto pensando e depois sorri. Vai publicá-lo. Pago a passagem e sento num banco vazio. Quando o ônibus alcança o meio da ponte, atiro as folhas na Baía de Guanabara.
2.10.15
Diários de X
Leio os Diários de X
e minhas costas suam.
A água me causa
repulsa.
Não procuro nada novo.
X me dá o que quero
encontrar.
Encosto na cadeira de
jacarandá.
Varanda fria entre
palmeiras.
A vidraça que me separe
das páginas
e do trote dos seus
cavalos.
A chuva traz um vento
com cheiro de sangue
e me chamam para
almoçar.
Hora de uma camisa
limpa
para marulhar
bondades.
22.9.15
Antes da noite acabar
Fotos de livros ao lado de xícaras de café.
Com florzinhas.
Com cheesecake.
Sobre uma cama imaculada.
Com morangos e geleias.
Sufocados por pétalas e mais pétalas de rosas.
Sobre um vestidinho de chiffon azul.
Um edredom de bolinhas.
Dentro de bolsinhas ecológicas.
Com canetinhas coloridas,
marcadores de bichinhos,
ao lado de bolsas de couro.
Mochilas de grife.
Com bonequinho de Harry Potter.
Uma árvore saindo do livro.
Folhas abertas com o mar ao fundo.
Sobre mapas.
Casacos de tricô.
Cascalhos de um jardim.
Madeiras nobres do gazebo.
Com estante ou sem estante.
Em dias ensolarados. Sempre.
Com gato ou sem gato.
Máquina de escrever Royal.
Um quadro-negro com sua citação preferida escrita a giz.
Borboletas. Muitas borboletas.
Óculos de todos os tipos.
Nada de cigarros, são dias de sol.
De ar puro.
De cultura livresca.
De canecas escritas.
De gente limpa.
De cabelos lavados e soltos.
Sites de livros.
De fotos de livros.
Você começa a enjoar daquilo.
Do café.
Do livro.
Da florzinha.
Do gato.
Da livraria.
Do autor.
De si mesma.
De sua capa e contracapa.
Do seu miolo.
Você começa a enjoar antes da noite acabar.
Com a mão cheia de comprimidos.
15.9.15
Deus é bom, três é demais
ver as paredes
ver o mato
limpar a mesa
arrumar as canetas
calar-me
alongar as juntas
as separadas
ver a tela
fazer correções
calar-me
mando um coração calado
a um poeta querido
que tem muito mais a dizer
ver as paredes
o nível da caixa d'água
quantos cigarros me sobram de vida
se falta uma palavra, escrevo na margem
ser o espaço vazio dentro do jarro
Deus é bom, três é demais
6.9.15
1.9.15
31.8.15
Ela tem vinte anos e é minha mãe
Ela tem vinte anos e é minha mãe.
Entra no
armazém, pede feijão, arroz, batatas, ovos e farinha.
Não é tempo de
gastar.
Sua aliança de
ouro arranhada a fina pulseira
de argolinhas
não faz ruído algum quando ela ergue
a mão para
ajeitar os cabelos lavados e revoltos.
Minha mãe tem
um leve cheiro de sabonete Phebo.
Hoje parece aflita.
Olha as unhas, consulta
o relógio.
Olha por cima
dos ombros, o beco
vigia a entrada
da loja, o pedestre na calçada,
como se temesse
estar sendo seguida.
Nervosa, está
mais linda do que ontem.
Não, está mais
linda do que nunca.
Lábios grossos um
batom discreto.
Olhos castanhos
sem maquiagem,
olhos de quem
se apaixona por suicidas.
Inclina-se para
escolher as batatas mais bonitas.
O seu António
espera ao seu lado, paciente, cansado,
o saco de papel
pardo na mão.
Escolhidas as
batatas, ela dá as costas e esfrega
as mãos uma na
outra para livrar-se da terra.
Eu tenho vinte
anos e trabalho neste armazém
muito antes de ela aprender a beijar
casar e vir morar nesta rua.
casar e vir morar nesta rua.
Uma casa de um
branco marmóreo
flores
selvagens ao pé da janela sempre fechada,
contou-me seu
António.
Ela recebe o
troco de minhas mãos trêmulas
e me retribui
com um sorriso triste.
Não nos
tocamos.
Não trocamos
uma palavra.
Amanhã ela
voltará aqui para comprar
algo que
esquece todo dia.
Todo dia é a
mesma coisa.
Um balcão nos
separa
e sei que nunca
seremos amigas.
27.8.15
Repare que a cinza cai
aquele garoto que era meu amigo
hoje não é mais
as coisas são no exato momento
em que acontecem
depois o ponteiro salta
cada um é sete por semana
mesmo que não morresse
ele não seria mais meu amigo
mesmo que não morresse
ele não seria mais meu amigo
enquanto fumo
a poeira brilha na luz
sua face voltada para o sol
evola e se acomoda
sobre todas as coisas
que um dia fui
para o garoto que era meu amigo
a poeira brilha na luz
sua face voltada para o sol
evola e se acomoda
sobre todas as coisas
que um dia fui
para o garoto que era meu amigo
uma lembrança não é o retrato fiel
uma lembrança é outra vida
repare que a cinza cai
21.8.15
20.8.15
Uma escritora de futuro promissor
Ela não era melhor escritora do que eu mas eu achava que era e por
isso tinha de matá-la. Ela não era mais bonita do que eu mas todos achavam que
era e por isso eu tinha de matá-la. Ela era inédita. Eu também. Até aí
estávamos quites mas eu achava que tinha mais chances e não queria dividir meus
leitores com ninguém. Demorei muito para ter a coragem de chegar aqui e
confessar o que estou confessando que mais dia menos dia eu vou matá-la e
ninguém vai ficar sabendo porque ela não tem a mínima importância, vou matá-la
e atirar todos os seus originais num esgoto bem longe de casa porque não quero
aquela coisa perto de mim para todo mundo ficar dizendo que é literatura quando
na verdade não é, isso é que não é, parece mais uma lesma e suas palavras
grudam umas nas outras e entram pelos meus olhos e escorrem pelo meu cérebro só
pra me convencer de que não devo matá-la porque ela é uma escritora de futuro
promissor enquanto eu não tenho futuro algum, ou melhor, meu futuro é agora e
já que eu nem ligo pra isso ou aquilo que por acaso ela venha a escrever quando
eu não escrevo uma linha há meses e isso sim eu não posso suportar, ela é tão
profícua e eu tão prolixa que ninguém me entende e prefere os textos dela que
são melhores do que os meus mas eu não acho, eu sei que não são porque de
literatura eu entendo, eu estudei muito pra isso, eu perdi noites de sono, eu
fiquei sem comer só pra saber o que é isso que todos chamam de literatura, e
não vai ser ela que vai me atrapalhar agora, porque antes que ela pisque eu vou
matá-la, antes que ela sequer pense em escrever eu vou matá-la, antes que ela
assine o meu nome em suas páginas eu vou matá-la e dar por encerrada esta
história.
(in Não feche
seus olhos esta noite, Rio de Janeiro, ed. Rocco, 2006)
19.8.15
pequenos comas sequenciais induzidos por barbitúricos
Por que não calam a boca?
Por que me dão notícias tristes?
Esse cheiro de carne aberta sobre a terra
de rio fundo
de pequenos comas sequenciais
induzidos por barbitúricos
castelos de mesa de cabeceira
com 32 carneiros de alma e nervos
pense
na Glock engatilhada como
um animal difícil de domar
esse cheiro de ainda somos
de filtro de barro pingando
no armazém do cais do porto
de coisa nenhuma
suas costas suadas
a pele de Pérgamo
de 2 horas e quarenta
os pequenos compromissos
o diário insolúvel
essas coisas aqui escritas
depois de quinze anos
de consideração social
ah sim, a consideração social
de lealdades arrastadas por inércia
batendo no alambrado
de falta de dinheiro para comprar
pilha para o meu papagaio
de só um pouco mais
lá é o mundo, você não precisa ir
de coisa alguma
depois mais nada
de uma prensa de uvas
para quem não tem paciência
com caracteres de chumbo
esse cheiro de vamos ficando
de sinos enferrujados
cronometrando o querer
Por que não calam a boca?
Por que não cobrem os microfones?
se o rio fundo parecia calmo
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