29.12.17
Aberto à visitação
A poesia quando vai para o papel já é um túmulo.
Depois forças alienígenas decidem se o colocarão
no Père-Lachaise ou na vala comum.
25.12.17
Dem think I'm gaawn
Dizem que depois da queda da guilhotina,
os condenados conservam, por segundos,
a consciência, a visão, a audição.
Dem think I'm gaawn but I'm still yah same way.
20.12.17
[picape verde]
morreu e nem
soube por quê
a picape verde
parada
rente à
plataforma de desembarque
espanta folhas
mortas pelos trilhos
sentado na frente dos três raios
o rosto pendido
para o mormaço
uma lata de Gilbey’s
na mão
naquela
mesma hora
ele desce a
rampa em Omaha
foi de
repente
11.12.17
Mná na h-Éireann
preparo minha mochila e vou fugir mato adentro. lá tem um lugar para mim. onde ninguém me verá. onde não verei nada além do azul e verde do charco que me cerca. mas o tempo me deu uma bagagem mais pesada do que uma mochila vinte-anos pode carregar e vejo meu corpo atracado com objetos. afundado nas duras trincheiras que cavei. na saída, elas impedem minhas pernas de correr. não sou mais eu. os objetos assumiram o poder. olho a casa de longe: uma garbage sale poderia livrar-me da carga que acumulei. tomem! levem! eya, blast everything to hell! eis aqui -- livro estante colheres copos pratos édipos planetas toalha toddy tv disco vitrola edredom melodias de ferro abajur bananas cinzeiro lápis cômoda cadeira cáries lampião cama pulsos abertos pão mesa bairro cartas de amor de isopor lanças barcos e dinossauros relógio controle remoto canivete pinguim bola de cristal. já não preciso de melhoral violão coçador de costas cotonete dicionário eletrônico psicanálise piano moldura ênfase, não preciso das batalhas de tabuleiro, da aventura das línguas, de poesias reunidas, cantos de maldoror, monólogos, observadores de escritório, do vento sul, do vento norte, da cabeça de heróis, das bênçãos de Morrígan curando minhas feridas, das Mná na h-Éireann, das linhas gerais de um conto, mitos gregos guetos e dias de paupéria. fico com a lanterna de mão um par de botas a roupa do corpo eu mesma a outra e alguns gramas dos anos loucos, da imagem de um rosto nos campos minados onde piso.
8.12.17
4.12.17
Je m'en fiche de tout
Não sei se
você se lembra daquele dia em que saímos com bandini e maria. fomos ver raw
deal no cinema e jantamos no de gausse. uma noite única não só porque quase me
sufoquei de tanto rir com as duas, mas porque estávamos felizes outra vez
juntas eu e você depois do voo de seis horas que tive de enfrentar para
encontrá-la. não sei se lembra. já são mais de quinze anos. o tecido da memória
se esgarça. corrompe histórias vividas. embaralha. redistribui. nunca mais nos
vimos. não vi você – seu apartamento – sua cama – seu corpo vitoriano – sua
tela Je m'en fiche de tout – as chaminés dos terraços vizinhos – as
linguagens de superfície. você se preparava para viajar ao senegal a trabalho.
joguei a mochila no sofá e nos beijamos ao lado de peixes apáticos. elogiei sua
bicicleta nova. a capa do keats sobre a mesa. o sabor do campo viejo. os
sobretudos abotoados não poderiam durar muito. e mais uma vez não gozei com
você. deixei-a só. incorporal. talvez você ainda esteja no senegal enquanto
tomo esta xícara de café e vejo pela janela o vapor que se ergue dos pântanos
sob a ponte. talvez agora seus caminhos de fuga usem tintas mais ásperas.
trincheiras. barricadas. foi um tanto abrupta a despedida. uma música alta e
mulheres dançando no salão. os carabinieri nas ruas. eu meio intoxicada de um
jeito ou de outro. o seu olhar aion. pegou-me pela mão, cruzamos uma arcada,
entramos num pátio, tocou meu rosto e envolveu-o com um adeus. um adeus que
hoje pela manhã saiu por detrás dos arbustos e me trouxe seu nome na explosão
final de um êxtase. não sei se poderei lembrar mais do que isso.
2.12.17
Cuida de mim como de um cachorro
Cuida de mim como de um cachorro.
Me dê um canto para ficar com água
de beber.
Meus panos.
Meus panos.
Meus papéis. Assino o que você quiser. Caso.
Tudo o que
eu tiver será teu.
O de menos. O de mais.
O de menos. O de mais.
A procuração. A propriedade. O
dinheiro.
Me deixe quieta.
Com minha bola azul. Meu sangue sobre o que
aconteceu.
Ponto final em vez de vírgula.
Deixa a comida na mesa, toque o sino
onde a casa começa.
Eu acharei o caminho pela trilha de ossos calcinados,
pelas
cruzes de galhos apodrecidos do sono que enlouqueceu.
Eu posso rir, posso
brincar, abanar o rabo para você.
Me faça um carinho. Coce a barriga. Mergulhe-me
no rio.
Tira minha coleira para eu poder ver teus lábios como são,
tua vida
como não sinto.
E submersa, olhos lavados sem desespero,
minhas patas molhadas
esmagarão cracas, moluscos e algas.
O cálice da infância.
Cuida de mim como de
um cachorro.
Apaga a luz.
Não enxergo bem na claridade.
Farejo.
Faço companhia.
Mato estranhos para te proteger.
E isto me comove.
23.11.17
Não deixa eu saber
Não
deixa eu saber que existes
e estás atrás de mim
por onde quer que eu vá.
Tenho poucas
lembranças mas em uma delas tu te acoitas.
Com teu vocabulário
certeiro
teu raciocínio
coeso
tua fome de
saber
o codinome miserável
que me destes
e não ouso repetir
porque seria pior.
Não houve revolução e
és avó.
A Nova Ordem é
ordem.
O Novo Mundo é
mundo.
O Novo Tempo é
tempo.
Ando pelas ruas a
olhar para trás do mesmo jeito.
Não deixa eu te
localizar nas sombras do meu medo.
Não faze de ti um
alvo.
Eu sabia atirar melhor
porque sabes.
Eu sabia escrever
melhor porque ensinaste.
Não deixa eu fazer de
ti meu último panfleto.
Quando eu olhar tua
foto no visor,
reza para eu não
lembrar do codinome.
Para eu não lembrar do
teu amor.
19.11.17
Incognita
Não
acreditaram quando eu disse que não era sua mãe. Os três empalideceram ainda
mais ao ouvirem minha voz. Não acreditaram nas minhas juras, nos meus
documentos, nos repetidos exames de DNA. Queriam a mãe de volta mesmo que na
réplica de uma completa estranha. Eu. Nas fotografias e pinturas de retratos
espalhados pela casa dos três irmãos: uma mulher venerada. Na sala de estar, na
sala de jantar, no salão de música, nos nichos entre um cômodo e outro, na
capela da fazenda. Diziam a quem aparecesse que eu era a mãe em meus menores
gestos. Na caligrafia, nos mesmos fios de cabelo fora de ordem. Que não era
coincidência, era sobre-humano. Não querendo constranger-me no papel oferecido,
queriam que eu me sentisse livre para movimentar-me, falar e agir no meu
natural, que quanto mais espontânea, quanto mais eu mesma, mais eu era a outra.
Após meses de insistência, por-favores e no final súplicas e genuflexões,
ficaram felizes quando me viram enfim instalada e habitando o quarto da mãe nas
ensolaradas terras da família. Permitiram que eu continuasse trabalhando em meu
ofício, vestindo minhas próprias roupas e perfumando-me com o que agradasse
meus sentidos. Minha única obrigação era ser eu 24 horas por dia, sem mudar um
milímetro. Andar como sempre andei, levar o garfo à boca da forma que sempre
levei, perder-me nas nuvens do céu como sempre me perdi. Falar com a minha voz
meus pensamentos, verter minhas dores com as minhas lágrimas. Eles sempre
estariam ao meu lado para ouvir e consolar-me. Respeitavam meus longos momentos
de solidão, minhas estadias no isolamento, meu silêncio. Nesses episódios, a
saudade deles só fazia aumentar. Um dia meu humor melhorava e o prazer do
reencontro em família queimava o corpo dos três como um êxtase. Após quatro
anos comecei a adoecer por qualquer motivo. Médicos, panaceias, acompanhantes,
espiritismos. Quando me recuperei, levaram-me para conhecer o mundo. Terra
cognita. Terra incognita. Comiam, riam e brindavam de olhos presos na mãe que
eu lhes dera. A Terra Reconquistada. E assim foram me vendo envelhecer como
envelheceria a mãe tão prematuramente morta, uma experiência que a vida lhes
recusara. Enchiam-me de atenção e cuidados, contavam minhas rugas, faziam
cálculos. No último Natal presentearam-me com uma cadeira de rodas motorizada,
uma caixa de cadernos em branco franceses para minhas anotações e uma nova
acompanhante multilíngue para eu não me esquecer dos idiomas que dominava.
Sabiam que eu já não podia trabalhar com o mesmo afinco e energia, mas que
minhas dores de cabeça e vertigem ainda permaneciam como sinais vivos e
incólumes de minha atividade cerebral minutos antes de escrever qualquer coisa.
Eu os via pelo espelho reunidos ao meu lado. Pálidos e emocionados. Notei que
não envelheciam. Eram os mesmos filhos como os conheci naquele fim de tarde em
que parei no posto da estrada só para verificar os freios e tomar um café que me
espantasse o sono.
13.11.17
Houve um tempo em que
Houve
um tempo em que eu misturava sexo com manga rosa e gozava só de acender. Houve
um tempo em que eu me apaixonava bastava um gesto e a moto fazia 120 por hora.
Houve um tempo em que eu lia Shakespeare, ouvia Kid Abelha com Black Sabbath e
ninguém tinha nada com isso. Houve um tempo em que eu tinha medo das drogas
porque me disseram que Hendrix e Joplin morreram disso. Houve um tempo em que
eu tentei mudar a sociedade com uma metralhadora mas queria chegar em casa
cedo. Houve um tempo em que eu percebi que podia trocar a arma pela palavra mas
a luta já havia acabado. Houve um tempo em que eu colocava no piloto automático
Guevara, Pessoa, Drummond, Baudelaire, Artaud, Glauber, Torquato, Oswald,
Nietzsche, Foucault, Maiakovski, Kerouac, Lautréamont, Camus, Poe, Lawrence,
Virginia Woolf, Borges, Ionesco, Bukowski, os amigos mais loucos e os cortes de
cabelo mais estranhos. Houve um tempo em que eu só era fotografada com um copo
na mão e o mundo girava na minha cabeça sem claustrofobia. Houve um tempo em
que eu descobri que as mulheres num canto de boate são mais do que amigas.
Houve um tempo em que eu trabalhava porque precisava, depois porque gostava,
depois porque não sabia fazer outra coisa. Houve um tempo em que o pôr do sol
começou a ser chamado de Arpoador e a partir daí tudo ficou normal.
(in Não
feche seus olhos esta noite, 2006, ed. Rocco, RJ)
12.11.17
Escrever é um autoflagelo
poemas inflados de gás
são para dias de espetáculo
escrever é um autoflagelo
amputar-se na trincheira do indizível
anular o ego para desbloquear a percepção –
carroça sem cavalos –
cozinhar limpar remendar
notas desenhos partituras
extrair uma bala do tamanho do Mississippi
deixar passar o macabro comboio de bandeiras
guardar laranjas e caramelos
aceitar
palavras que não casam – vivem juntas
tirar-lhes um retrato e pôr no papel
o cérebro – alto-mar – enfim se esvazia
mas nunca as envia
metade de uma parte
entre chapas de identificação do peito
5.11.17
Eles matam poetas
Ninguém me acha aqui.
Quando helicópteros passam no céu,
nem preciso baixar a cabeça.
Ninguém me acha aqui.
Janelas e portas fechadas,
cinco cães de guarda me envolvem,
cinco punhais de aço sobre a mesa.
Ninguém me acha aqui.
Telefone fora do ar
escondido na própria pele,
não ouço a ninguém.
No entanto o fim do oxigênio circula minhas palavras.
Toda crítica literária é bullying.
13.10.17
Y
Estrada Y em obras.
Ouve no rádio uma notícia inesperada.
Incrédula, desliga o motor e estala
a língua no meio dos incisos centrais.
A hostilidade entre os dois era muito antiga.
10.10.17
4.10.17
O Texas vive
Obrigada, Mr. André de Leones, pelo seu carinho sempre presente.
Você sabe que até me esqueço dessas coisas que escrevi, ahaha.
Mas acho que o sonho foi real sim. Credo.
Grande beijo.
1.10.17
Geração Marginal
Na rua Toneleros
poetas jogavam-se do alto dos prédios
ali perto
sentada num balanço de jardim enferrujado
eu via cantar nos terraços
o galo branco de um porteiro
30.9.17
Volto não
não precisa mãe eu pego um táxi
levei sim
se escrever não fale do país -- pra quê
vou ficar bem
volto não
28.9.17
24.9.17
Entrenervo
não saio de casa para não pegar vírus, vermes, um caminhão desabalado, conversas pela metade, células parasitas, pedras e moedas no chão, febres, vertigens, tremores, você conversando com o guarda, o sapateiro, o açougueiro, rindo com a verdureira, postando uma carta, tomando coca-cola com iPhone, não saio de casa para não pegar todo chocolate, todo livro, todo sol das prateleiras, o próximo ônibus para a Praia dos Anjos, o cinema das dez, o som da música dos apartamentos, dos pombos, das registradoras dos supermercados, do giro completo das roupas nas lavanderias, dos pães crepitando nos fornos, do garoto vendendo aipim, da máscara e do rosto, do véu de Maya, do olho por olho, de bocas pítias assobiando, espirrando, cuspindo, carpindo, de lenços raspando lágrimas, suores, almas, das bancas abrindo, dos jornais que queimam já pela manhã, dos trens enterrados vivos, dos pneus fraturando latas, presunções, a garrafa de Klein, o cigarro que joguei, o som dos estalos da história, da barca saindo para Niterói, de um avião para Guangzhou, não saio de casa para não pegar amor por um braço de mulher, por um animal perdido, um verso de banheiro, um violão de brinquedo, um pugilista em repouso, por um sopro, uma janela aberta, por um desuso, um duplo imortal, pelo cheiro de gasolina, gim, por perfumes de limão, corpos, cabelos despenteados, carnes, amendoim, sobrevivências, para não pegar desejos, escapes, trilhos, tristezas que passam pelo ar, não saio de casa para dar um ponto final.
22.9.17
Bichos
De 7 às 7
sem luvas sensoriais
põe a roupa-corpo-roupa na máquina
varre todo o espaço pictórico
lava privadas e objetos relacionais
esfrega superfícies moduladas
sobe e desce vazios escadas casulos
secando a baba antropofágica da patroa
ouve Have U Ever Seen the Rain
dentro e fora numa fita de Moebius
20.9.17
16.9.17
12.9.17
À porta do elevador
Qual o outro nome para besta?
Balestra
Bonito, ba-les-tra
Toma, leva o guarda-chuva
25.8.17
pleasures
pleasures
how lose much from co
omething to love an
kind I respe
e not calculated t
and consequently
unhappy situation
ide in a mother
her moans and inarticu
th a mournf
followed these words
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