31.7.20

Meia música




Canta meia música, lê meio parágrafo, bebe meio copo. O que você está fazendo. Tentando pôr algo no papel. Tentando escrever. Sim. Não é mais uma vontade, não é. É fixação, você já me disse isso. A meia porta do naufragado. Eu não posso mais ficar aqui ouvindo os seus dramas. Tenho uma reunião de trabalho agora. Diga a eles que concluí minha tradução ontem. Não sei se está boa. Preciso rever ainda. Entrego semana que vem. Por que você mesma não diz isso a eles. Por favor. Pelo menos é uma coisa que escrevi, nem que seja pela boca de outro. Não, foi o outro que escreveu pela sua boca. Tanto faz. Dane-se. Já vai. Sim. Quer que eu te deixe um café. Não. Meu estômago não vai suportar. Tente escrever agora. Ouça um clássico. Jazz, dependendo do tema. Vou te deixar em paz. Quem sabe sozinha sai algo dessa cabeça. Não, fique aqui comigo. Não posso. Seja adulta, vai. Todo o papel de que precisa tem aí. Apontei seus lápis. Não deve ser tão difícil pra você. Não é isso. Você está voltando a beber. Não devia. Eu preciso me acalmar. Tem os comprimidos. Eles me embotam. A raiva. Você devia encarar isso com mais profissionalismo. Não como um canal para a raiva. Mas o que você está dizendo. Nem me conhece mais. Pode ir para a sua reunião. Como quiser. Almoçamos juntas. Sim. Como quiser. O pássaro continua a bicar a vidraça como se me pedisse alguma coisa. Quer falar comigo e não consegue. Mande tudo pro diabo, ele diz. Escreva sobre mim. Escreva para mim. A menina entra no quadro da janela e puxa conversa com o pássaro. Ele foge. Não é sobre a menina que quero escrever. Não é para a menina que quero escrever. Já lhe dediquei muitas palavras e ela está do mesmo tamanho. Não cresceu. Ela sabe disso, por isso sempre volta aqui e espanta os pássaros que vêm me visitar e pedir que eu escreva para eles. Ela acha que escrevo para ela, mesmo quando não é, mesmo quando não escrevo nada. Acha que escrevo para ela para incentivá-la a escrever também. Mas a menina não quer ser como eu. Não quer ficar deitada na cama o dia inteiro desenhando letras. A menina sabe que tem um futuro pela frente numa profissão que ainda não escolheu. Ela nem pensa na mortandade que nos cerca e que me prende aqui. Quando for embora, o pássaro voltará à janela. Está lá no galho esperando, vejo daqui. Posso desenhá-lo. Sim. É o que farei. Tenho melhorado meu traço. Quanto menos escrevo, mais aprimoro meus desenhos. Uma coisa pela outra, ele diz, contente que a menina foi embora. Estou aqui com você agora. Faça um desenho meu. Natural. Como eu sou de verdade. Sem invenção. Quero ver como você me vê. Vou ficar aqui pousado, quieto. Posso cantar enquanto espero. Eu espero. Meio canto. Meio desenho. Meio eu e você. 





25.7.20

24.7.20

Febre




Espero a febre dela baixar. 
Aperto sua mão e sorrio dentro da máscara. 
Agora estou pronta, querida. 
Livrei-me de todos. 
Basta dizer o que penso
dar três clicks
e enfiá-los na mala do carro. 
Tiro a máscara.

23.7.20

Lapa





No início tudo era água
que o tempo foi secando.
Todo deserto era fundo de mar 
dizia Camilo Pessanha a quem quisesse ouvir. Não o poeta, mas um velho bêbado do circuito boêmio da Conde de Lages. A mesma rua que de uma janela no alto atirei décadas depois o livro de um poeta cujas iniciais do nome formavam a sigla de um vírus fatal que começaria a acossar a humanidade no remoto e nada saudoso ano de 2020. Camilo não existe mais, nem a Conde, nem livros ou poetas. Mas aqui no tubo de concreto onde moro ainda posso ouvir Villa-Lobos, antigo frequentador da Lapa, hoje Latin America Placement Agency. 







6.7.20

Vamos para casa







vaporub tem cheiro de mãe / não da sua / aliás o que você está fazendo aqui lendo essas coisas quando eu falo de mim e só a mim interessa o falo e escrevo


vaporub tem cheiro de mãe
sou uma vaporubber e vou fingir que não tem ninguém aqui e não tem mesmo enquanto o unguento arde sob minhas narinas como um halls intense cool enfiado no reto para climaxizar o prazer deste orgasmo que você nem perceivbe ou sente junto comigo

este é o romance do vaporub
comecei a datilografá-lo agora nesta segunda feira que armaram na minha rua -- esta semana compro um saco de laranjas sicilianas e sento no banco do ponto de ônibus ouvindo o chiado dos freios os pés que sobem degraus imundos que laranja cheirosa descasco devagar dedos cravados enfio na boca os gomos com o cuidado que tenho de morder uma pele macia e lambo os lábios babados de vaporub com mãe e tudo noites encatarradas as mãos dela massageando meu peito de mentol cânfora eucalipto um coração eucaliptado para o resto da vida

não adianta você quebrar o meu computador eu mesma quebrá-lo numa cena teatral de cozinha eu posso escrever em qualquer teclado ouça bem pelo menos o que eu acho: essa monstra eletrônica em que me transformei não manda em mim minha cabeça manda em mim e eu mando na minha cabeça nestas teclas-lápis no romance agramatical que farei na minha mente mesmo que pare por aqui ele continua -- esta é a parte que você não vai ler i'm a vaporubber ponha um ou dois bês, bebês não, não case com esse homem, mãe, não quero nascer / perigo: produto tóxico. agora enfio o vaporub bem dentro das narinas para arder mais orgasmos que ardem são os melhores e depois um cigarro chamado rothmans pula nos meus dedos e corre para os pulmões olha só vejo que coloco acentos é o hábito da maldita profissão que vou largar para trás, glória a MIM. e ao momento de descuido em que a cinza cai dentro da manga do casaco e não me queima e se queimou não senti prazer. anestesiada, amnesiada. alguns chamam kerouac de datilógrafo. não era. era poeta. já eu tenho orgulho de ser datilógrafa. fiz até um curso. larguei depois como largo tudo em que toco, glória a MIM. que não prendo nada nem ninguém. digo palavras de amor a quem quiser. digo palavras ásperas por dentro por fora. fica ao meu lado quem quiser. a porta da rua está sempre aberta. jamais pedi que voltem. este j'accuse você não vai jogar na minha cara. mas se você chorar e o meu amor se comover, eu volto. é o vaporub do meu coração mole ali operando para soltar sentimentos encatarrados, a minha humanidade capenga. not a soul inside. perdendo meu corpo para amantes. chorei hoje. parece que há muros que não cimentei bem. não quero ir mas vou. aposentar-me. fique com meu emprego. sou uma vaga. com minhas botas grandes demais para você. descasque laranjas sicilianas e tome cinco tiros nas costas. sua voz no telefone ainda é linda. e a menina toma sol no telhado. uma visão poética de 1 segundo é coisa que não esqueço jamais. por toda a costa da praia ainda lembrarei. em 1954 malibu só tinha areia. a praia do foguete também. milhas e milhas de areia quente. tudo vazio entre ais. ice. quando começarei a história do romance? daqui ais pouco. quando a dança terminar. conhece essa música? tudo vazio entre ais. veja como eles dançam. os cascos batendo nas tábuas de madeira. that's right. muitas histórias me contaram. repeti-las pode ser traição. outras inventei. escrevê-las pode ser menti-las. vou colocar moedas na juke para dançarem a noite inteira. ouça o vento das canções em volta de nós. pare de chorar. vamos botar gasolina no posto. me dê a mão. há tantas tristezas que ainda não vimos. i dare to say. take a look. picape the good book now. a chuva deixou mancas manchas brancas nas paredes. a poeira baixou. andemos por ali. por esses rios de tinta. não tem ninguém. ainda haverá paredes amanhã. dentro das mesmas histórias. eu sei. mesmo que eu vá embora, meu bem. os velhos querem morrer na frente das farmácias. vamos recolher seus corpos. vamos para casa.