30.12.21

Fundo de areia

 

Experimento:

O abrupto esvaziamento tuborretal sempre me provoca um desequilíbrio glutoneuronal. A sensação é de tumores humorais aquosos calcificando-se na minha haste plêurica mestra. Tudo aconteceu depois do amanhã, às 37 horas da escuridão. Eu estava espectando o domo vazio dos planetas sobreviventes pela chama do isqueiro e vi o que sentia. O Nada mais inteiriço e caudaloso de minha pequena existência celêumica. Duvidei até de que havia nascido. Não comunicam essas coisas. Não do jeito como 7 e 5 podem ser 12, 2, 35, 1.4 e outros procedimentos matemacirúrgicos mais complexos, os obscuros certamente jamais serão disseminados neste éon. Nunca pedi parágrafos, mas a máquina me dá. Algo deve ter me afetado depois disso. Estou sem alimentar-me desde então. Substituo por uma sequência de baterias hemoplasmáticas dos meus ancestrais, reservadas para estas contingências desde Eu Já Esperava Por Isso.

 

A claridade natural aqui dura uns 30 minutos, pois temos uma anã branca expressa e muito comprimida do que os primitivos chamavam de sol. Este sol engoliu a terra e tive sorte de poder ter escapado com meus dispositivos de sobrevivência e algumas avarias físicas. São uns dois mil habitando comigo uma rocha oceânica que o astro não viu despencar, porque naquela altura tinha olhos. Meio cegos, mas olhos. Na súbita hora da helioglutonaria, a rocha foi cuspida universo afora e cá estamos. A anã branca que restou é mais cega ainda, mas oferece migalhas de calor e luz quando gira célere pelas trevas celestes do universo-agora como somos. Vivo numa caverna como os outros. Não podemos chamar este torrão de planeta. O mar transformamos em água confiável e o oxigênio castiço dá para todos, por enquanto. Respiramos por turnos. Plantamos o que lembramos. Alguns acham que estamos num fragmento da Grécia, pelas características geológicas. A maioria não crê nisso. A Grécia não havia mais quando o sol explodiu. Difícil conviver com helenossaudosismos encruados. Grandes eventos sempre deixam um rastro de loucura na mente acabadiça. Se não tomarmos cuidado, esses poucos Nós Sobreviventes de nostalgia espectral começarão tudo de novo. Romas, Cristos, inquisições, navegações para conquistar as cavernas uns dos outros. E o pior. A América — hoje um NO2 à toa. A humanidade não costuma ver o que está na sua cara. Cega como sóis. Tão destrutiva quanto. Mas infelizmente precisamos uns dos outros nesta lasca de vida que nos coube. Há um certo amor no fundo dessa areia.





 

24.10.21

Holy Steps

  


Steps in the Garden.

I quickly throw the key of Eden down the privy.

Two bullets in the drum.

I kneel down.

I pray.

O Lord.

And wait.

The first I reserve for Thee:

Ego Te multiplicabo et faciam Te in multitudinem populorum.




21.10.21

Mormaço

 

– É um biscoito amanteigado que Olga Breno entrega a Raul Schnoor para  ele comer. Você reparou?

 

– Sim. Levei anos para perceber o detalhe.

 

– Biscoitos amanteigados num barco à deriva.

 

– Olga corta o dedo ao arrancar a folha de alumínio da lata. O indicador?

 

– Penso que sim. Mas cortou-se com a faca ao descascar uma laranja. Olga limpa o sangue na água salgada.

 

– Que laranja? Nada disso. A faquinha corta a folha interna de alumínio da lata e depois Olga puxa a folha e se fere. O que eu sei é que o corte no dedo não estava no roteiro. Aconteceu.

 

– Não estava? Impossível.

 

– Não.

 

– Um neto de Raul me falou que estava sim. E tem importância a Mulher 1 olhando para a sua ferida. Seu desespero com o próprio agir fracassado.

 

– E o Mario? Que disse?

 

– Nenhum comentário.

 

– Eu soube que Olga revelou que foi real. Ela se cortou mesmo.

 

– De propósito? Por orientação do diretor? Ou saiu da cabeça dela?

 

– Aí já não sei. Mas não creio. Ela não tomaria esta liberdade. Pode ter sido acidental. Mario era rígido com o passo a passo. E Olga, muito obediente a ele.

 

– Talvez, mas no caso ele não iria cortar e refazer a cena com tudo engatilhado. Mais trabalho, tempo, despesa. Luz do dia desperdiçada.

 

– Sim. Deixou rodar e acabou acrescentando mais peso ao infortúnio. Você sente o corte na sua pele. Uma agonia.

 

– De fato. Sabe que vi tantas vezes esse filme que frequentemente me pego de ombros caídos como Raul manuseando dois gravetos para não pensar em nada. Ou lembrar-me. Entregue. Imóvel.

 

– Cinema à deriva. O salto no vazio. Gosto disso. Mar. Anonimato. Imagem-pensamento...

 

– Eu também. Essa estética de TV, enredos prognosticáveis, temas repisados, falas por cima de falas, um ruído ensurdecedor quando não sussurros, caras e bocas higienizados, atuações robóticas, um capinzal de moral e doutrinas, não suporto mais. Nem assisto.

 

– ...duelo de olhares ressentidos à beira do túmulo de uma mulher-amante. A frase conclusiva de violenta beleza inesperada.

 

– Sim. “E se eu lhe disser que ela é morfética?”

 

– Todo linguagem poética. Trêmula. Oceano atemporal.

 

– Será que os biscoitos vieram da Bhering do primo de Mario, onde Olga, ou melhor, Alzira, trabalhava?...

 

– Falta pouco tempo para o filme completar 100 anos.

 

– Por aqui não haverá outro que o supere.

 

– Tão cedo. E Mario morreu na merda. Teso.

 

– Mundéu.

 

– Vamos fazer os pedidos agora?

 

– Pra mim um cálice de aguardente. Doze graus. Isso lá é temperatura de primavera?

 

– Que horas são?

 

– Tarde. Uma hora.

 

– Menos uma. Menos uma.

 

 

 

14.10.21

De um momento para o outro


Poucas são as coisas minhas que não as comprei. Cabeça, tronco e membros. Por todo o resto paguei. Caro. Muito caro. Ataúde. Catacumba. A navalha. A navalha roubei da gaveta ministerial do sólido filho da puta do meu pae, aquela massa desconjuntada de artérias, negócios e reprovações. Em dias raros comprei barato. Quase de graça. Vento. Chicletes de troco. Revistas velhas. A sombra da mãe à janela imaginando a minha natureza e o que me levaria aos meus próprios limites. Aí a coisa já exigiu mais despesa. Eu teria de caprichar no ataúde para ela sofrer menos. Voltar a relacionar-me com amigos afastados pouco antes do último arremate para que as despedidas fossem concorridas e a mãe visse como foi amado o que por muito tempo guardara em suas mãos. Comprei perfumes caros para tornar o ambiente menos viciado em olhos inflamados e gânglios de desprezo. Uma bata discreta. Um cache-nez para o pescoço. No bilhete, recomendei horas ao sol de novecentos graus antes de descerem minha cápsula nos arredores da cidade. Há um certo frio em campos cultivados e espectadores. Prometi que voltaria se melhorasse. Daqui a um século, de um momento para o outro. Pena que não os veria jamais. Se pudesse escolher, procuraria um pardieiro bem mais distante de todos os seres que conheci cordialmente. Cerimônia concluída, passeio pela represa ali perto. Sem planos para o futuro. Me perco de vista. Agora sim, impenetrável corpo inteiro. Volátil. Arrebatado. Tudo grátis. E uma nuvem de poeira.




30.9.21

Ondas

 

Pelo microscópio de varredura até o pó de Luis de Camoens 

vede! 

tem sua máscara. 

Acendo um cigarro do meu maço de Cumbre Vieja 

a passeio num matagal de redondilhas mínimas.  

Marinheiro 

Marinheira 

Quero ver 

Você no mar 

Decidamse, Ondas, que partes mhas devo desmembrar para ser dos.

Eu, quem não suporta mais a convenção dos signos. 

Falar de si na primeira pessoa que já não sou por lyure vontade. 

Cobrirme de cómodas no frio. Porque sim.

Frígida língua fixando pregos no pensar. 



27.9.21

a propósito de Κικέρων

 

                                                           a propósito de Κικέρων



sedutora de linfas e Quasimodos

vi logo que era poeta

pedi-lhe um verso carmelita

comprou-me um sacolé de manga

mordi-lhe a língua bêbada

e mergulhei ali

ensanguentado licor




29.8.21

Escreva

 

Eu não estava preparada para uma vida atrás das grades em minha própria casa. Quando tudo começou e na estrada de terra seca não passava mais ninguém, o vento apagando todo rastro que eu poderia seguir no dia em que tudo aquilo tivesse um fim, havia coisas que eu precisava fazer que não dependiam de mim.

Estas são as piores.

Coisas que precisariam ser consertadas em meu corpo. Que uma outra vida teria de fazer o serviço por mim. E de repente não havia ninguém. Era como se ao levantar-me de uma cadeira de rodas para gritar socorro, a janela fosse uma escotilha lacrada, me faltassem forças para abri-la e acabasse indo ao chão sem conseguir nem mesmo rastejar para o convés deserto de um navio deixado para trás.

Não tem tanto tempo assim que você foi embora, mas sua presença durou uma era. Sempre tomando conta de tudo para mim, para nós, para a casa. Esta cidade que somos. Eu já não sabia mais andar por minhas próprias pernas. Pagar contas, comprar comida, conversar com estranhos, receber amigos. Agir era transportar-me pelo quarto, olhar pelas vidraças. Olhar para dentro. Rabiscar no papel. Adormecer.

Você só dizia, Escreva.

E eu escrevia. Prisioneira da mesa, do papel, do lápis, do alfabeto.

Até que um dia você quis a sua solidão só para você. Sem depoentes. Fez as malas e se foi. O vento não demorou em rasurar suas pegadas. Eu não poderia mais segui-las.

O que fazer com esta mesa? O papel, o lápis, o alfabeto. O meu corpo. Esta cidade que são.

Há oito ou dez palavras novas que todo mundo aprende a cada inédita calamidade. É para isso que servem desgraças e hecatombes. Para aumentar o vocabulário da humanidade.

 

 

 

23.7.21

Non-stop

 

Reduz a velocidade porque a estrada vai acabar  para o seu bairro começar na próxima curva. E ali o ar é mais puro frio. E ela pode respirar pela cabeça das estrelas. Difícil suportar. A cólera empedrada vai se desfazendo à medida que os pneus deslizam entre árvores. Inspira fundo ao chegar no posto pouco depois da entrada. Nada. Pisca os faróis e estaciona. A cerveja à espera na mesa. Todos conhecem sua rotina. Sua rotina conhece a de todos. Do marido, dos amigos. Faz a mímica de beijos atirados. Puxa a cadeira e senta. Todos já se fartaram. Tinham fome. Quem chega de uma viagem de quatro horas non-stop não tem fome. A maré do sangue precisa baixar. Dá um gole na cerveja. “Em Cabo Frio, todo mundo sabe que você foi rebocada.” Não entende do que estão falando. Acha que ouviu essa mesma frase num filme antigo de combustão espontânea. Apostaria que ninguém ali o viu. O jardim de vozes embaralha seus sentidos. Não consegue concentrar-se em nada do que dizem. Não ouve mais. Não opina. Não se interessa. Apenas uma lápide de cortesias emoldura seu rosto. Os olhos fixos na rua deserta lá fora. Nenhum automóvel costeia o posto para abastecer. O seu deserto químico. Não quer voltar para o carro e ligar o motor. Como justificar depois? Na bolsa não resta um frasco. Ri quando todos riem. Fica séria quando ficam sérios. Merda. Ninguém para. No desfecho do segundo copo da cerveja intragável, um automóvel enfim contorna as bombas e para na aditivada. O frentista aperta o gatilho e ela vai até a janela de um salto. O parapeito só para si. O cheiro da gasolina liberta-se do reservatório subterrâneo e o oxigênio se cala. Ela inspira fundo outra vez e aos poucos o cheiro de puro plâncton a acalma. Tudo muito simples. Muito basso ostinato. Nada mais tem esse poder. Nem drogas, nem perfumes, mantras, os antolhos de bons livros, um bom banho, um bom marido, um bom filho que a obriga a ser mãe quando queria ser filha para sempre. Só o aroma da gasolina vibrando pelo ar como “When I am laid in earth”. Sente-se aquecida agora. Naquele parapeito só para si. Como se escrevesse uma coisa pensando em outra. Quando saem do restaurante do posto, ela vê uma pequena poça de combustível escorrendo para o meio-fio. Agora. Tudo poderia dar certo. Ela para ao lado da poça. Acende um fósforo, coloca o cigarro na boca e olha para o marido com malícia. Na cabeça medíocre do homem ela está com saudade e ele se aproxima. Agora. Ela o abraça para ficarem um só. Agora. Não. E assopra a chama do palito: a Paradise within me, happier farr. O prazer mais íntimo não se divide com troianos.     

 


 

10.7.21

Mädchen in Uniform

 

 

A professora de matemática foi meu Mädchen in Uniform 

Nos rochedos atrás do pátio 

A sua sala privativa depois das horas 

Nas galerias tristonhas do liceu onde se confundiam os homens e o mundo 

Nos banheiros femininos em que nos fumávamos pelo sangue 

As casas noturnas de bairros distantes passando lentamente 

Quando o marido viajava atrás de seus bezerros de ouro 

No fundo de todas as coisas 

Falávamos línguas diferentes 

Eu era uma desgraça operacional 

Para entender ao meu lado 

Que por (5t – 9 = 16) ela queria dizer Sim

Que (5x + 6y = 1) era Não

E (t4 – 8z = x) significava Quero te ver agora. 

Com o tempo as sentenças ganharam fluência e não havia brigas 

E irredutíveis nessas conversas só nossas 

Não sei o que lhe deu ao me ver sentada na última fileira 

primeiro dia do curso 

Quem sabe o que não sou mais capaz de ver em mim 

Há entretantos no entretanto 

Hoje a saudade é uma fisionomia 

Páginas avançam sem contar essa história a ninguém 

E não contam 

O que determinado momento da vida corpo 

É toda essa enormidade consciente até o fim 

Contar 

Seria como morrer 

Laceramento 

Torquemadas chamariam de παράφιλία o que era 

Uma vertigem de ferro a queimar tout doucement






8.7.21

29.6.21






                                   

Tenho ciúmes dos tweets que você lê. Tão distraidamente.




(repurposing ana c)



Online de batom


Enquanto às 8 da manhã tomo sol cantando Be My Baby para os meus cachorros, 

você já está online de batom dando palestras espíritas sobre a inteligibilidade e a 

dinamicidade do falar em línguas em contraposição ao ensino formal normativo-

subordinante da língua portuguesa nas instituições acadêmicas. 


Será que algum dia teremos algo em comum?

Aquele just the way you are mmm mmm mmm.



24.6.21

Para Anne Sexton

 

to anne sexton



You know what waves really say.

They say Am I. Am I. Am I.

Anne and I am I?






2.5.21

Bom dia à minha custa

 

Eu tinha metade do teu tamanho

Quando encostei a faca de manteigas

A um centímetro do teu olho &

Sibilei o que ninguém na casa ouviria:

Bata outra vez em minha mãe

E te mato.

Teu olhar misturou-se à poeira do chão

Que chutei ao dar as costas.

Nunca mais ousarias.

Foi nesse dia que nasceu

Meu amor pela literatura.


7.4.21

Peregrina

 

Estou dentro do táxi com meus dois filhos.

Irineu ao lado do motorista. Irene ao meu lado segurando minhas mãos.

Sei para onde me levam.

Hoje é o meu dia de vacinação e Irene não segura. Ela aperta minhas mãos como se eu fosse o cachorro aterrorizado que vai arrojar-se pela janela na primeira oportunidade do freio.

Irene tem belas mãos, sebosas mas belas. Bem torneadas para combinar com as preciosas joias que me pediu no dia do seu casamento e não devolveu.

Minhas mãos são enrugadas, enrugadas como alguém que sorri, enrugadas mas limpas. Desanuviadas.

Vejo a paisagem lá fora, a nuca do motorista e a nuca do meu filho. Se é que podemos chamar de paisagem prédios encardidos, ônibus fumegantes, terrenos de lodo e um tropel de faces desesperadas. O odor do futuro.

Irineu continua com seu velho hábito de limpar o nariz com o indicador durante percursos de táxi. Evito sair com ele. É tão compulsivo que o taxista o encara enojado, o que já é uma lisonja. Irineu arriou a máscara para melhor desfrutar o seu gozo.

Irene não é diferente. Durante as aulas no colégio limpava o nariz nos cabelos náiades da colega a sua frente. Em silêncio astucioso. Fui chamada na diretoria várias vezes. Não sei se continua com esta rotina apesar de toda a educação formal que lhe dei. A psicóloga disse que minha filha estava expiando sua angústia de endoutrinamento. Não encontrei referência a essa moléstia em nenhum manual de psiquismo moderno. Paciência.

O trânsito é lento. O carro segue lá para a puta que pariu da cidade porque perto de casa não há nenhum posto. Irineu e Irene não conversam. Lançam-me olhares eventuais mas fecho os olhos antes que me atinjam. Despisto curiosidades. Não quero arrazoar. Se estou tomando a esperança deles nos remédios, se faço meus  exercícios, se exponho-me ao sol e outras lengas. A torta de brócolis que Irene me deu foi parar sem rodeios na lata de lixo. Ela pensa que me deleito com essas porcarias que nem às moscas seduzem. Liguei para a Txuleta e pedi um javali.

Estou indo me vacinar. Espero escapar com vida. Que pelo menos me inoculem soro no deltoide em vez de ar na veia. Por mim eu não tomava a merda de vacina nenhuma, mas meus filhos -- meus caçadores -- querem que eu viva e sobreviva copiosamente para poderem me infernizar mais. Meus antigos sucessos são sua fonte de nutrição.

Quatro horas depois, entro na casa sossegada e arranco a máscara. Escoro minha felicidade. Que reclusão é esta que estou em flor? Por onde estou, já sou outra. Há um alívio em meu peito, não posso negar. Irineu e Irene me deixarão em paz até o dia da segunda dose. Tomo um banho sequioso apoiada na barra de segurança. Faço dez flexões e na undécima incorporo a Peregrina. Personagem principal de “Enganos do Bosque, Desenganos do Rio”, a alegoria de Sóror Maria do Céu que estou adaptando babilonicamente ex machina para o meu retorno triunfal aos palcos. Escondo-me deste país peregrina.



16.2.21

1 poema de Margaret Atwood


 

Você engata em mim

como um anzol no olho


um gancho farpado

um olho aberto


("You fit into me", Margaret Atwood, tradução Maira.)




13.2.21

Um teto todo outrem




Desperto de maus bofes. Cansada e revoltada são palavras frouxas para definir o meu estado. Não perderei tempo indo ao léxico que fica na casinha recuada onde faço minhas necessidades. Pressinto que parentes planejam matar-me entre segundos de insanidade e sutileza, que poetas conspiram para escorchar-me os piores versos, principalmente os piores por quem mais me afeiçoo. Certos dias, quando dotada de paciência, leio poetas patrícios e descubro um verso meu ali, uma ideia que já compus acolá, e sentencio “furto qualificado”, mas entendo que no fundo todos escrevem as mesmas coisas-ninho, que estamos todos debaixo do mesmo teto todo outrem, enterrados nos mesmos campos, escavando as mesmas minhocas, e afinal que minhoca sou eu no incomensurável cosmos de cabeças decepadas? Hoje é 13 de fevereiro e acho esta data de grande sororidade sonoridade, queria ter nascido do útero dela, mas nenhuma diferença faria, bem sei. Um governo coturnado bate à porta e quer vacinar meus animais e ferramentas agrícolas com seringas ocas da guerra dos Bálcãs. Escondo-me no miolo de bananeiras e enfio trapos nos ouvidos para não escutar ninguém. Debandam. Em seguida almoço e ouço canções de erotismo histérico e pueril. Tomo um banho rápido só para perfumar-me que limpa já sou, é a sujeira que tenta nos convencer do contrário. Há livros para ler mas empreguiço-me com todos. Fastio. Olhando assim de bastidor, pareço burlesca, não sou. Tudo fingimento. Serôdio. Estou na primeira fila do meu teatro e me assisto penalizada. O ingresso para ver-me é muito caro. Não valem as penas. Deixo-lhes então no tablado a companhia pucciniesca do meu galo. O velho que mo vendeu disse tratar-se de um legítimo galo polonês. Como de Polônia só cheguei até a Lituânia, aceitei-o pelo preço pedido, Мда, доста съм съгласна. O bicho canta que é uma beleza, quer ser o maior país da Europa. Numa bandeja de prata.