18.5.19

Até não sobrar ninguém



esqueço das pessoas uma por uma até não sobrar ninguém
os barcos saem aos poucos da marina desde cedo
alguns a passeio outros a trabalho
para as primeiras horas da manhã
eu os acompanho um por um desde cedo
o vento a mudança das cores do movimento da água
a velocidade que imprimem os mais apressados
como toda gaivota é apressada em torno deles
o sol miúdo vai se expandindo e entra nas casas
não me cansam estas manhãs inteiras ancoradas na varanda
vê-las passar de barco sem me levar no convés mas no calado
o sol está alto agora e bate no sorriso que meu rosto me faz
uma mulher que não estava ali se interpõe entre nós
meus olhos e o que vejo ficam atrás dela
os barcos a marina
no lugar do mar ela coloca um sorriso na boca
e sinto frio
um frio que não estava ali
passo por uma porta e o ar fica preso comigo
entre paredes e móveis
um prato branco sobre a mesa talheres
sento para comer, a mulher instrui
descubro uma janela aberta
ela mostra do outro lado um muro
a mulher não senta para comer
não tem um prato na sua frente
não tem um sorriso na sua frente
não tem uma imagem nas paredes
a comida não é boa nem ruim
umas frases soltas atravessam meu pensamento
e não sei de quem são
para onde vão
elas passam e outras a seguem
um caminho seco
de passos no cascalho
o ruído me inquieta
o peito aperta
a dor de cabeça
remédios fazem sangrar mais
atrás das frases vêm imagens
minha mãe ou o que sobrou dela
podem destruir meus manuscritos
o que sobrou dela não é aquela mulher
que não come nem sorri
me leva para lá e para cá
fala em outra língua da minha língua
talvez não seja para eu entender
“a fumaça do meu sacrifício não ascenderá aos céus”
lembro de uma passagem
agarro o binóculo em meu colo
lá embaixo é o mundo, você não precisa ir
entardece
o vento está de volta
e os barcos regressam de mais um dia
eles nunca se atrasam