“A menina que gostava de cheirar cocô” era uma canção muito antiga do folklore das coxilhas dos pampas. Minha vó cantava, a avó da minha avó, e assim retrospectivamente. Não sei se devo contá-la aqui, há pessoas que leem durante as refeições, algumas acabaram de se deliciar com um divino washoku, outras leem enquanto defecam: mas, sejamos neorrealistas, cadê, sejamos neorrealistas. A história não tem qualquer relevância canônica especial, na verdade é uma singela canção de ninar campesina. Por inúmeros relatos de família que ouvi, e após intensa pesquisa com a população local e bibliografia labiríntica consultada, apurei que a canção tem sua origem aproximada no baixo medievo bizantino e atravessou os séculos, com pequenas alterações tonais, até o período napoleônico, chegando aos pampas do hemisfério sul com as imigrações do século XIX. No período de antanho, de nossos antepassados muito antepassados, sabemos que povoados inteiros e suas vielas, e até cidades de grande importância comercial e cultural, cheiravam à merda, comme à Paris. Nos tempos atuais, esta situação civilizatória seria impensável, inimaginável, apesar dos transbordantes esgotos abertos que ainda hoje perduram em vias secundárias ou nos centros de poder de Ningbo à Flórida, Toronto a Estocolmo, sem que os conselhos municipais, uns malversadores, tomem medidas para o reaproveitamento fecal inteligente. Mas não vim aqui para falar de políticas públicas. O fato é que hoje, e muito antes de hoje, embora seja visível e notória a sugestão de violência e outras perversões truculentas nos versos não tão inocentes da maioria das canções e histórias infantis, a inofensiva merda defecada ainda não é bem-vista na poesia e na literatura em geral. Não temos uma coproliteratura estabelecida. E vejam como são espantosas as pessoas. A merda sai de dentro de nós, é parte de nosso sopro vital, como outras seivas corporais que, au contraire, costumam ser decantadas e liricizadas à exaustão. No entanto, a merda é intransferível, é o único bem que ainda não nos roubaram. Um exemplo singular de como o nosso próprio fedor salva nossa identidade, nossa psique já tão sufocada e esgotada por ambientes superpopulosos. Nosso cocô mereceria mais atenção por parte não só das instituições e academia, mas sobretudo da arte ficcional, hoje tão asséptica e perfumada che non fa ne defecare ne stimola la diuresi, no máximo orientada apenas para cenas cansativas de sucessivos derramamentos de sangue, mortes, um clichê. Sim, porque o público que não suporta o próprio odor natural do seu corpo não vai querer ver um filme que tematiza duas horas o cocô, nem comprar um livro que fala de cocô em 200 páginas de papel couché, não vai comprar um livro encadernado a cocô, ouvir uma playlist fecalista, como na história de nossa menina ancestral que gostava de cheirar cocô e, o mais importante, de cheirar a cocô, para que os adultos dela não se aproximassem para fazer-lhe algum mal, erigindo o cocô como uma barreira que a separava de uma realidade externa atroz e ameaçadora. E que ameigado o refrão da cantiga que eu ouvia em pequena: "Cocô, meu cocozim, tri-li-lim tri-li-lim." Pena que os versinhos mais educativos e pseudo-repugnantes da cantiga de infância tenham escapado de minha memória. Foram valiosos os ensinamentos de minha vó naquelas noites antes de dormir com meus ursinhos babados, ambas de bunda bem lavada. Porque minha vó, apesar de entender os motivos justos de autodefesa da menininha do folklore, costumava dizer que “uma alma de cu lavado é a primeira a entrar no céu”, provavelmente porque a bíblia chegou nas coxilhas dos pampas em mulas jesuítas para acabar com o sucesso pagão da lenda da menina que idolatrava fezes. Diferentes da menina sábia, hoje as pessoas rebuçam suas emanações corporais como podem – desodorantes, talcos, eau de cologne, odorizantes de vasos sanitários 30 horas, aromaterapia para ansiedades e camuflar o odor cediço de regos úmidos –, correndo um risco de vida enorme com essas práticas químicas radicais supostamente higiênicas e culturalmente influenciadas pelo TOC do hemisfério norte. Raciocinemos, gente asseada e perfumada atrai humanos perigosos a milhas de distância. De gente suja ninguém chega perto, o que diminuiria as estatísticas de violência, aumentando a expectativa de vida. Faço estas anotações rápidas numa cafeteria toda odorizada de uma livraria, eu mesma já tomei quatro banhos hoje. Chego a pensar que sou uma suicida em potencial. Mea maxima culpa. Preciso perseverar. "Você devia é me agradecer por eu estar contribuindo para a sua segurança urbana vital, e ao mesmo tempo para a sua saúde: não quer cagar, coma menos. Sempre evoco o cheiro de merda quando entro numa dieta sacrificial para perder o gosto por um filé sangrento e toda sorte de gorduras ruins", comento com o barista desocupado para quem leio minhas anotações. Faço questão de observar a ele que seis cardiologistas de diferentes linhas, os quais consultei ao longo da pesquisa que é a minha vida, aplaudiram minha estratégia, quatro deles levaram minha ideia aos seus pares em convenções internacionais da classe. Apiedo-me dos que se perdem no deserto e precisam limpar o reto com areia em vez de apenas recolher e armazenar o seu produto interno bruto para a eventualidade de um infortúnio, uma rebelião tuaregue, uma Odissey Dawn. Apiedo-me dos que têm de aturar uma visita indesejável por horas, mesmo dias. A visita indesejável não se apercebe de sua indesejabilidade e fica atrapalhando nosso sossego porque somos cheirosos, a casa é cheirosa, a comida é cheirosa, os drinques perfumados, e isso a seduz. Se começássemos a falar de cocô, se cheirássemos a cocô e do mesmo modo tudo que nos cerca, teríamos a nossa paz restaurada num estalar de peidos. Reconheço que artistas plásticos desconstrutores, e até alguns pobres poetas malditos fracassados, já obraram em suas telas e escreveram sobre o tema que exponho. Mas foi insuficiente. O impacto minguou-se e o preconceito resistiu como um uakitite. A desconstrução fecalista revolucionária foi rechaçada, desdenhada, pasteurizada em humor barato, desmonetizada e esquecida, porque no final o Das Kapital do Bom Ar sempre prevalece. Enfatizo: não basta defecar e apertar a descarga. Temos que exercer a inteligência anal plena, falar sobre a merda, abrir nossos corações, olhá-la, acolhê-la. Curto-circuitar narcisismos tolos e tirânicos. Precisamos nos perguntar diariamente, “Por que sou um shit hater?” Olhar no espelho e fazer a pergunta que nos obrigaram a calar desde as nossas primeiras fraldas sujas, a pergunta iluminadora da menininha sobrevivente: "Por que diabos, tri-li-lim, devo odiar meu cocozim?"