27.12.12

Mesa para duas




Jantar hoje Fiorentina 9h não falte.
Não posso.
Por favor... por favor.
Tem uns dez anos essa conversa.
Nem sei se o Fiorentina ainda existe.
Coisas que não vejo mais para mim acabam.
Acabei indo. Banho tomado, dente escovado,
camiseta rasgada nova. Perfume de noite.
O táxi me deixa no Forte.
Alguns passos pela beira da praia
e atravesso a Atlântica.
Lugar cheio.
Não me arrependo porque
em casa estava mais quente.
Ela não se levanta. Eu não sorrio.
Uma tônica na mesa.
Um filé com alface pela metade.
Peço um Gordon's puro.
Estou me mudando.
Quando?
Salvador. Amanhã.
Você odeia Salvador.
Passou.
E por quem passou?
Por favor. Não é hora pra isso.
Ela raspa o prato. Sinto um cheiro de sal.
Você vai ficar bem?
Na mesma.
Esvazio meu copo.
Olho em volta e não a vejo mais.
Ela entrou e sumiu dentro de mim.
Tem certeza?
Não se preocupe. Tenho minhas vitaminas.
Então sorri e dá um tapinha na minha mão.
Eu sorrio também.
Não sei por que fiz isso.



24.12.12

Vegetal



Quando um carro passa acelerado por minha rua enquanto escrevo, é o som de um trem o que escuto. Se estou dentro do trem, o que ouço é o carro acelerando na minha rua enquanto escrevo.  Hoje às 8:08 em ponto teve fim a minha vida de carne. Virei vegetal. Imóvel no meu leito, não terei mais nenhum contato com o mundo externo, pessoas externas, coisas que se mexem. Dei por encerrada ontem minha última atividade e não erguerei um dedo para manter-me de pé. Que me importa. Se quiserem me lavar, que lavem. Que me arrastem daqui e coloquem na rua. Se quiserem me adotar como vegetal de estimação, muito que bem. Não ligo. Alguns dirão covarde, outros nem darão por falta. Há quem faça anotações na margem direita: tomou o caminho mais longo. Eu vegetal não penso no futuro, no que acham de mim, o que fazer amanhã, o que responder, comer, vestir. Não há mais devos. Só eu comigo mesmo. Olhos fechados, nem penso. Que o amigo sincero não se preocupe, nem o pedagógico lamente. Pelo que deixei de fazer, eu até me desculparia, não fosse já um vegetal completo. Tenho 99 moedas em Mi Ranita e umas tantas de ouro no banco. Devem dar para alguma coisa a quem souber aproveitar. São 17:53 em Caracas, 16:53 em Bogotá, 15:53 em Manágua, 14:53 em Denver, 11:54 em Honolulu, porque já passou um minuto. A cada hora o telefone vai tocando menos. Um vegetal ninguém procura. Só evita. Contorna a casa onde o vegetal está lá dentro, vegetando. Improdutivo. O visível com quem ninguém pode contar. Depois fotografam a porta para nunca mais esquecer.








23.12.12

Algo contra mim




E se ela tivesse algo contra mim?
Não algo físico como o meu nariz.
Ou o quintal de alguma coisa.
Mas algo assim no meu jeito.
O segurar do copo sem beber.
Pegar a tesoura e não cortar.
O papel higiênico e não limpar.
O pinçar de um só medo
no meu núcleo de medos.
Um explicaria todos.
O tempo que fosse.
Eu poderia perguntar a ela.
Aqui mesmo.
Perguntar coisas que Inês nunca.
Mas ela se acomoda na poltrona
em frente. Nenhuma outra.
Como se fosse ouvir
o que não ia ouvir.
Troco meu refil de suicidas.
Espero. 
Pelo menos por um tempo.
Atrás dela, a ilusão ótica da lua
encobre a sua cabeça.
Puxo o lençol e fecho 
o livro com o lápis no meio.



16.12.12

3 poemas de Vasko Popa




A caixinha

A caixinha ganha seu primeiro dentinho
E crescem sua pequena altura
sua pequena largura seu pequeno vazio
E todo o resto que ela tem

A caixinha continua crescendo
E o armário que a continha
Agora está dentro dela

E ela cresce mais e mais e mais
Até conter a casa a cidade a terra
E o mundo onde antes estava

A caixinha lembra de sua infância
E pela força da saudade
Torna-se caixinha outra vez

Agora tens na caixinha
O mundo inteiro em miniatura
Podes levá-lo no bolso
Roubá-lo facilmente perdê-lo

Cuida bem da caixinha




O número esquecido

Era uma vez um número
Puro e redondo como o sol
Mas sozinho muito sozinho

E começou a calcular consigo

Ele se dividia se multiplicava
Se subtraía se somava
E sempre acabava sozinho

Deixou de calcular
E se fechou em sua redonda
E ensolarada pureza

Lá fora ficaram ardendo
Os traços de seus cálculos

Que começaram a se perseguir na escuridão
A se dividir em vez de multiplicar
A se subtrair em vez de somar

Como acontece na escuridão

E não havia ninguém a pedir
Que os traços parassem
Ninguém que os apagasse




Últimas notícias sobre a caixinha

A caixinha que contém o mundo
Caiu de amores por si mesma
E concebeu
Outra caixinha

A caixinha da caixinha
Também apaixonou-se por si
E concebeu
Mais uma caixinha

E assim foi sem parar

O mundo da caixinha
Devia estar dentro
Do último rebento da caixinha

Mas nenhuma das caixinhas
Dentro da caixinha que se amava
É a última

Vamos ver se descobres o mundo agora



(Tradução Maira Parula, 2012.)






13.12.12

Edifício Danville


101
Filho da puta! Egoísta! Bêbado! Débil mental! Uma porta bate e os gritos cessam.  Ouço o elevador sacudindo pelo poço e o cheiro de charuto cubano se espalha pelos corredores. Hoje a mulher não dorme.

102
Ao lado é o silêncio. O neto deve estar plantado no boteco da esquina e os avós mochileiros já foram dormir. Amanhã o alarme despertará às seis para o trekking diário dos velhos. O vagabundo continuará desmaiado na frente da TV ligada.

103
A fumaça de gordura frita sobe pelo fosso e invade meu apartamento sem desperdiçar um cômodo. Não demoro a detectar e identificar o prato do dia.  Uma nojenta carne de vaca.  Avanço pela cozinha, me estico no peitoril e jogo uma casca de banana podre na área do 103.  Neste prédio reina a educação pela pedra.  Eles deviam me agradecer de a minha não quebrar-lhes os vidros.

104
Ali mora um casal de amigos meus. Eu é que os avisei de que o imóvel estava para alugar. O que aconteceu há uns três ou quatro meses. Eles nunca me visitam. De vez em quando me convidam para descer e jantar caranguejo porque sabem que sou alérgica. Jogamos canastra. Com as mãos inchadas, sempre demoro a bater.


 201
Lésbicas. Duas. Demorei a entender a dinâmica do entra e sai, pois, ao contrário do que pode parecer, sou muito distraída. Festas de sábado só com mulheres, rindo e saindo pelas caixas de som. Ocupando todo o quadro da janela. Eu não conseguia ler nem dormir. Se tivesse o telefone do coronel, ligava. O coronel aparecia toda tarde de quarta-feira no 201. Uma das moradoras abria a porta. A mesma sempre. Depois abaixava a persiana. Uma hora mais tarde ele ia embora com seus cabelos brancos amassados. Na fronha, o cheque do aluguel. A outra voltava à noitinha. Unhas vermelhas cansadas do trabalho. Morar no Rio sempre sai mais caro do que o combinado.

202
Então foi ela. Semanas atrás desci do táxi bêbada e puxei uns trocados do bolso da calça apertada. Na confusão perdi o que nunca mais encontrei. Ontem ela tocou a campainha me pedindo uma cebola e comentou titilando o piercing da língua que adorava morar naquele prédio porque só tinha doidão. Imagine você que até papelote de cocaína já achei no chão da portaria. Era minha última cebola.

203
Divido este apartamento com um colega de faculdade. Ele quase não para em casa e pisa forte, o que me dá nos nervos. Fora isso, é uma boa companhia. Detesta jogar baralho, como eu. Não leva ninguém para trepar em domicílio, nem pede emprestado meus livros ou fuça minhas coisas. Filósofo amador, traz pizza de pepperoni para temperar nossas conversas até de manhã. Meu estômago me diz que não ficará muito tempo por aqui.


204
A maçaneta da porta é imaculadamente limpa. Por isso nunca confundo as nossas portas. Mãe, pai e filha. Às vezes sinto cheiro de galinheiro quando enfio a chave na minha fechadura.  Nunca se sabe o que acontece atrás de uma porta com maçaneta imaculadamente limpa.

Elevador

Estou lendo a biografia do Strauss.
O das valsas?
Não.
O das calças?
Nããão, sua zebra. O das estruturas.
Ah.

301
Este está vago. Os vizinhos se mudaram depois que o apartamento pegou fogo e eles perderam tudo. Acompanhei o trabalho dos bombeiros. Não havia muita coisa para perder. Achei uma harmônica Hohner debaixo de um colchonete queimado no quarto de empregada. Aprendi a tocá-la em pouco tempo. Originalmente as gaitas eram o castigo para quem perdia torneios de poesia. Acho justo.

302
Você sabe com quem está falando? Eu sou Fulano de Tal! Fulano de Tal!, gritava o famoso contrabaixista antes de comer a mulher de porrada. A polícia chegava em quinze minutos para pôr um fim naquela jam session. Eu nunca ouvira falar no Fulano de Tal!, nem os vizinhos nem a polícia, quem sabe por isso mesmo é que suas brigas com a mulher tinham de começar sempre com uma apresentação do seu CV ao distinto público. Ele tocava em pequenos bares da moda, pesquisei. A mulher pagava colcheias e semicolcheias e não recebia o mesmo tratamento carinhoso que as cordas. Com o casamento nasce o bebop.


303
O filho adolescente tem um topete e canta Elvis no chuveiro. Da coleção de vinis do pai é o preferido. A mãe tem uma voz medonha. O corredor do terceiro andar cheira a mijo de gato. Eles não têm gato. Numa manhã de sábado sou acordada pela campainha disfêmica. A Medonha no olho mágico. Abro a porta e de um jato entra a família inteira na minha sala, assessorada por dois assaltantes. Um deles aponta o cano de um 38 para a minha cabeça. A Medonha grita. O ladrão grita. Todos pro banheiro de empregada. Que é mínimo. O ladrão armado fica na sala ouvindo Clara Nunes enquanto o outro revista meu apartamento. Depois de uma hora eu continuo suando imprensada pelos Medonhos em volta da privada. O ladrão só gosta de Clara Nunes, só ouve Clara Nunes, e eu só tenho um disco de Clara Nunes. Se este garoto cantar Love me Tender aqui, eu acabo com a raça dele. Qual de vocês cheira a mijo de gato?, eu tinha de saber. A Medonha começa a chorar. Calem a boca vocês aí!, disse o Nunes entre uma música e outra. Não tem nada na porra desta casa, vamos vazar, disse o outro. A porta bate. Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é que mexe com ela. Alguém nos destranca minutos depois. Um vizinho chamou a polícia. Minhas mochilas cheias de quinquilharias são devolvidas intactas. Perdi um relógio e um isqueiro extra-fino de ouro falso. Os Medonhos voltaram para o 303 sem sequer me dar uma satisfação do mijo de gato. Vou levantar este tema na próxima assembleia geral do condomínio.


304
Filho adulto solteiro mora com mãe divorciada. A solidão da mãe continua igual. Pegou um pug para criar. O pug desce de escada. Não temos elevador de serviço. A boa alimentação é a preocupação básica das mães. Todo dia o filho come uma gema crua de ovo equilibrada numa colher de sopa. Eu brinco com o pug e ela me chama para ver o saxofone do filho. Abre o estojo com orgulho materno e espera que eu abane o rabo. É um belo instrumento. Ele toca? Ah, sim, mas não aqui. Não pra mim. É um prédio muito musical o nosso, penso, fechando o estojo. O pug me encara com tristeza esbugalhada.

401
O quarto andar é o mais sombrio. Talvez porque ninguém passe por lá. Quem vai fica. Entra em uma de suas quatro bocas. Como a poeta que vivia aqui antes de eu vir morar neste edifício. O 401 está fechado há cinco anos. Não tem ninguém lá dentro. A família não vende, não aluga, não empresta. Ninguém viu o corpo da suicida sendo levado. Por isso há uma lenda de que ela ainda está lá. E esta lenda passa de morador para morador. De um edifício para outro. Como os canos de esgoto.

402
O velho aposentado mora sozinho. Abandonado pela família, dizem as escadas. Sofre do coração. Não pode beber, não pode fumar e deve sonhar com a mulher todas as noites. Eu ainda posso beber, posso fumar e às vezes sonho que ele morre dormindo sonhando com a minha mãe.

403
Aqui mora alguém que eu nunca vi, mas sei que existe. Sinto seu perfume lá do meu andar. No elevador que desce vazio. Ouço um choro baixinho e muito longe. Não vou bater em sua porta, embora saiba que é a mim que espera a vida inteira.

404
A síndica. Eu não vou falar da síndica. Transfiro a outrem os poderes de representação desta laia. Quem quiser que me aplique as multas previstas no Regimento Interno.



9.12.12

Cadenza

























M.R.L. é doutora em teoria literária e adora minha estante amarelinha. Tem seus momentos prosaicos. A convite do consulado francês, está escrevendo o septingentésimo quarto ensaio sobre a dificuldade dos poetas em dialogar com a crítica contemporânea, ou o inverso. Não lembro. 

Quando ela chega em minha casa, 
atira todos os seus procedimentos técnicos na poltrona. 
Um por um. Devagarinho. 
M.R.L. está há 20 minutos totalmente dentro da minha bout-rimé. 
Eu é que demoro a gozar.




8.12.12

A natureza do mal




Foi assim que ela resumiu a sua história na delegacia. Afrouxei a gravata e acendi um cigarro. O filme que eu queria ver naquela noite não passaria mais. Em um curto espaço de tempo aprendemos a esquecer os planos da semana inteira. Paciência. Meu filho afogou meu cachorro na piscina por pura maldade. Meu filho desde que nasceu me dá trabalho. Meu cachorro era velhinho, a piscina não tem escada, ele não poderia subir. Vivia comigo há doze anos, desde pequeno. Um grande companheiro, um amigo, o único confidente. Não sei por que o menino fez isso. Da janela da cozinha eu ficava de olho nele, vigiando qual seria a sua próxima maldade. Matar passarinhos, esmigalhar lagartixas, apertar o pescoço das galinhas, chutar nossos coelhos, isso tudo para ele era natural. Miolo de sua natureza. Ele não tem pai. Eu também não. Não foi culpa minha. Era um bêbado que um dia deu um tiro na boca quando me viu passar sorrindo. A vida sem um pai fica difícil. Esta é a palavra certa. Mas com meu cachorro eu não precisava de palavras certas. Tudo se entendia entre nós. O garoto era um estorvo, falta alguma coisa na cabeça dele. Alguma coisa que eu não dei. Ou que eu dei para tirar de mim. Parece que nasceu com toda a maldade que expulsei de mim. Foi um parto demorado. A cabeça saiu deformada, depois foi pro lugar. Meu cachorro sempre gostou dele. Tratava o garoto como um filhote seu. Ele aprendeu a andar com o cachorro. Comiam juntos na sala. Dormiam juntos. Depois que o menino nasceu, meu cachorro me abandonou. Eu achava engraçado. No começo me deu ciúmes, depois passou. Com um pouco mais de tempo eu sabia que iria gostar do meu filho. Eu só precisava de tempo. Meu filho era uma missão, o senhor entende? Talvez eu não estivesse preparada. A casa é grande. A piscina é funda. Cachorros sabem nadar, meu filho não sabia. Isso ele não aprendeu com o cachorro. Esperou o cachorro ficar velho para matá-lo. O meu filhotinho. Quando o vi boiando na piscina, nossos olhos se fixaram um no outro e vi que ele estava morto. Seus pelos espalhados no azul. A língua roxa. E o maldito garoto observando tudo de longe. Acho que sorria. Não sei dizer. O sol no meu rosto e a raiva por dentro não me deixavam vê-lo direito. Não gosto de luz por isso. Fui na cozinha e peguei dois sorvetes na geladeira. Sentei na beira da piscina e fiquei lambendo o sorvete olhando meu cachorro morto. Eu não iria chorar. Sabia o que ele estava pensando. Dois sorvetes de creme. Nosso sabor preferido. Rezei por ele, para que ficasse ao lado do Senhor. Para o Senhor acolhê-lo. Mostrei o outro sorvete ao menino. Ele sorriu para mim, veio correndo e sentou ao meu lado. Ficamos lá, os dois olhando para o cachorro enquanto o sorvete pingava. O sorvete derretia, mas não eu. Eu tinha uma missão. A missão de toda mãe. A primeira parte eu já havia cumprido. Quando os dois sorvetes acabaram, eu sabia que havia chegado a hora de completá-la. O menino atirou a caixinha na água. Ela ficou boiando no focinho do meu cachorro. Ele lambeu a boca melada e se levantou. Foi Deus que conduziu minhas mãos, doutor. Fique certo que foi Deus.







30.11.12

O corpo



Viro a cabeça & vejo os trilhos. Vermelhos
-- ebulindo no azul aeroplano
uma pequena poça sem ventos.
Olho bem para eles -- Não dirija à noite.
Uma voz de lado.
Do outro, algum tempo ainda.
Na mão contrária, o bilhete da cozinha:
a vida vai ficar pronta num minuto.
Sente & espere.
As janelas acesas.
A garrafa no balde de gelo.
No fundo do copo um banho quente.
A que horas você volta?
Liguei o carro e meu nome foi embora.
Nosso abraço saindo da cidade.
Os trilhos continuam pelo falar:
não se mexa enquanto estiver diluindo.
Onde bate água tem de escurecer.
Acho que chegarei bem em casa.
Meu amor.









24.11.12

Puro algodão




Eu estava com insônia e dali a algumas horas teria um dia muito ocupado. Martelar isso não me ajudaria a dormir. A cama e o colchão foram comprados a longo prazo e o dia ocupado à frente tinha algo a ver com isso. Pensei um minuto. São 3:10 da manhã e se não demorar muito talvez eu possa dormir se não pensar muito em demorar a dormir. Não pensar muito não é o meu estilo, o que também pode demorar. Comprei o lençol errado. Certo porque tem listras azuis e brancas, mas alta concentração de poliéster. Sigo as listras ora pelo azul, ora pelo branco, entrando no azul, dobrando até o branco e saindo no azul novamente. Paro no caminho para beber água. Sento numa pedra. Se aqui faz sol é porque do outro lado do mundo faz lua. Posso esperar quando o que espero é o esperado. Apanho um punhado de areia. Regulo a velocidade de saída dos grãos dentro do meu punho fechado. Por meus dedos duas horas escorrem em dois segundos. Um barco a remo passa na listra seguinte. Alguém me acena de lá e engulo uma fatia do meu bolo de aniversário de quinze anos. 
Naquele tempo os lençóis eram puro algodão.

  


17.11.12

Quando não se quer dizer nada



Não tenho medo de tudo
Assim, só de barata
Aqui em casa não tem barata
Então é como se não tivesse
medo de nada, nada de nada
Passa esse chocolate
Mas, sabe o que é?
Tenho medo dele
Daquele rapaz de cachinhos
Ele é uma esponja
Se eu espirro, 
ele espirra
Se troco as calcinhas,
ele troca as cuecas
Se cumprimento alguém,
ele põe o mãozão na frente
e aperta tanto que o alguém
fica com a mão dele 
e esquece da minha
Eu tenho medo de esponja
De gente esponja
Tudo que eu falo 
parece que foi ele que falou
Tudo que eu escrevo 
ele escreve mudando as palavras 
no que fica a mesma coisa
Melancia à vontade
O dia em que ele se alojar
na minha fossa ileocecal,
ninguém salva
hum, o chocolate tá booom
como sabia que eu gosto com castanha?
Só minha mãe sabia
e ela virou areia na praia da Urca.
Um chocolate é uma coisa tão simples
Não desaparece nem quando se apaga a luz
E se a gente parecesse as únicas pessoas aqui?





16.11.12

Aprendi com Baudelaire



























(em Não feche seus olhos esta noite, Ed. Rocco)


12.11.12

Unha festa no xardín


Non podería haber día máis perfecto para unha festa no xardín.

A lua cheia sem uma nuvem.

Nosso barco se aproximando de Tipasa.

Vai explodir em 15’ 14”.

Daí ela cinge o futuro às amígdalas.

Como extirpá-lo de vez?

Ela não quer a minha morte, acha que não preciso morrer porque de certa forma já estou morto. Mas sou capaz de farejar sua fome. A maldição sob os pensamentos mais leves. Esse fogo subterrâneo da, não, não me pergunto a idade. Para mim tudo tem seis meses, o dia em que a conheci. Sem tempo. Sem amigos. Sem respostas -- todas já nos viraram as costas. Andamos juntos os dois. Faço o que ela pede, manda ou roga. Não expresso condições, ou ajusto parágrafos mentais. Inútil dizer por quê. O boi avança cego para o matadouro. Ou para as estrelas. Um dia começa a cantar.



16.10.12

O Canal
























Ela saiu de novo.
A velocidade dela aumenta quando está mais próxima do sol.
O que é isso?
Kepler. Sonhei com ele esta noite.
Os corpos celestes se movimentam demais pro meu gosto.
Não se preocupe, ela volta.
Você continua frequentando a sua rue de Lille?
Sim, eu não paro de me escrever.
Mudou o estilo pelo menos?
Que ranzinza hoje, não?
Rabiscos, tudo não passa de rabiscos.
Você tem de parar de vigiar essa mulher.
Minha janela dá para o Canal.
E você não sai dela. Fica coagulando água aí.
Ela passa todos os dias, todas as horas,
daqui sou capaz de ver até os ossos.
Que não são poucos. Um alinhamento de canhões.
Têm música pelos lados.
Você devia dormir mais.
É pior.
Até este Canal imundo tem duas saídas para o mar.
É. Onde trombam as águas.
Há quanto tempo ela saiu?
Umas duas horas.
Costuma demorar?
Às vezes. Pela manhã volta mais rápido.
Pretende falar com ela?
Não sei. Acho que não. Nunca direi.
E por quê?  Eu vejo tudo e calo?
Se falar, deixo de pensar.
Se falar, pensará outras coisas.
Já faço isso sem precisar falar com ninguém.
Eu não saberia viver assim.
Você é uma criança que precisa tocar as coisas.
É perigoso não entender o que acontece,
palavras são meio caminho andado.
Palavras são notícias. Não dizem pernas, braços, 
pele, nariz, ombro, orelhas, carne, sangue.
Da mulher do Canal?
Não, do meu corpo. 
Você precisa comer. Está magra demais.
Eu não me moveria se algo não me arrastasse.
Gilbert?
Napoleão, sob a cúpula dos Inválidos.
Precisa de dinheiro?
Não. Me traga um descongestionante nasal.
Ok. Tenho de ir agora.
Está bem.
Fecho a porta?
Sim, por favor.
Até logo então.
Até.