11.1.13

Autorretrato com rabanetes




sento na praça da liberdade com meu saco de pipoca. olho o relógio.
não me importo que a chuva molhe o banco, o saco, a jaqueta, 
se pipocas molhadas desmancham na minha boca. 
duas caem no chão. foi quando a vi. 
uma agenda de 2009 suja de terra. 
a página de dados pessoais vazia. 
na do calendário, um 17 de fevereiro circulado. 
a 10 de janeiro começa o que parece um diário.
ponho a agenda na bolsa. levanto. procuro um bar. 
e assim passo a noite. 
encaro um cachorro-quente com Dreher.
a chuva afina, o frio não passa. 
a mulher do diário espumava rancores. 
meu celular toca duas vezes. não atendo.
não aguento mais sustentar esse homem, escreve.
hoje faz dez anos. o meu marido. 
o artista da casa. o pintor. 
pra piorar também sou agente dele. 
que só pinta. chinelão, bermuda suja, coçando o saco.
eu divulgo, intercedo, dou dinheiro pra tintas, telas, zorbas boxer. 
não sei quando isso vai acabar. eu me mato de trabalhar. 
estou uma caveira de cigarro aceso. 
nossa vida é sem graça. o sonho de um eunuco.
diz que casou comigo porque sou retrato vivo dos elementos da mitologia.
sou uma buceta de Courbet. 
mesmo assim não temos filhos. 
fodo de Maja Nua, Maja Vestida, e não emprenho do meu galinho de Chagal.
larguei a faculdade para sustentar este traste.
eu achava que vadiagem era sinal de inteligência. 
hoje acho que ele tem uma amante. 
minha irmã o viu na rua com uma mulher. 
uma fiandeira enrolando novelos de putaria. 
ou deve de ser outra artista vagabunda. 
ele passa os dias em casa pintando cacarecos, 
não sei quando encontra tempo para me chifrar. 
diz que o avô italiano era pintor famoso, uma longa linhagem do ócio. 
chamava-se Simone. na terra da Cappella Paolina isto é nome de homem. 
não lembro de ter ouvido falar de uma veduta assinada Simone. 
espirro mostarda no pão. vou folheando.
dia 3 de maio uma observação: só é arte quando chamam de arte. 
ontem comprei figos no horto. 
não porque ele goste de figos. 
quer pintá-los. 
comprei não porque gosto dele. 
quero vê-lo de pau duro pintando os malditos figos. 
quero ver se é capaz de torná-los mais bonitos do que são.  
ligar advogado amanhã. entrar pedido de divórcio.
sombras e luzes é o meu fiofó. 
a cor é onde os hemisférios cerebrais ocos dele se encontram.
cansei de vagabundo botando no meu abaporu. 
2 de junho: os figos saem horrorosos. como eu supunha. 
ganhou até prêmio. prêmio, nunca dinheiro.
um pintor automotivo me daria uma vida menos macambúzia e mais Gropius.
nesta noite fiz sexo oral com a natureza-morta.
ele está preparando agora a série Rabanetes. 
lembram uma bomba peniana. a exposição será em Jundiaí. 
final do ano ele quer ir pintar a Toscana. pois sim. 
vou pontilhá-lo todo e morar em Paris.
virar musa de arte de rua.
pensando bem, não.
fracassado dá em jabuticabeira.
meu pé já tá por aqui.
fecho a agenda. 
oi, você por aqui. que chuva. posso sentar com você? 
Paulo e eu esvaziamos uma tequila.
leio o diário pra ele. 
9 de agosto: escuta, o dia amanhece.