18.1.13

De repente un poco de luz



Um incandescente sol de fim de tarde castiga a janela da carruagem queimando meus lábios. O cocheiro açoita os cavalos e cada solavanco azeda mais um pouco o vinho barato que tomei na bodeguita antes de embarcar. Zonza, sem saber onde a terra se acaba e o mar começa, vejo quatro pessoas viajando naquele inferno comigo. Podem ser duas. A paisagem lá fora são linhas, junções, curvas e ângulos que minha mente não consegue agrupar num sistema lógico. Sinto outra vez a terra tremer sob meus pés. O dia não me caiu bem, concluo. A madre abadessa me disse palavras duras que quase me fizeram vir às lágrimas, se lágrimas eu houvesse para desperdiçar. Eu chegara quase ao amanhecer no Convento de Rozas, na ilha de Santa Cecília, onde fui recebida por uma noviça deleitosíssima que me conduziu por frios corredores à presença de uma mulher de rosto papiroide. Apresentou-se como a madre abadessa, a superiora encarregada do treinamento espiritual das dezenas de freiras e noviças que habitavam o convento-escola. Eu sabia que o convento da ilha de Santa Cecília gozava do privilégio de ser o refúgio mais procurado pelas almas femininas em desespero que ansiavam por uma vida monástica. Só que nem todas as desesperadas do mundo tinham passe livre ao interior de seus muros. A madre abadessa impunha rígidas condições de admissão e as provações para se conseguir uma vaga cativa no claustro exigiam um despreendimento ainda maior do mundo físico. Não era para qualquer uma. Eu ouvira falar de toda espécie de mortificação carnal e que a madre tinha um conceito misterioso e muito particular de votos perpétuos. No entanto, a curiosidade pelo grotesco não estava entre os motivos que me levaram ao convento nessa manhã. Agora não sei o que direi às meninas quando chegar em casa. Há alguns anos administro uma oficina de costureiras chilenas hiperativas e o caráter de minhas visitas a instituições religiosas é puramente comercial. Padres, monges e freiras precisavam de quem lhes confeccionasse regularmente peças de vestuário, além de artigos de catre, mesa e altar. Muitos mosteiros e conventos dos mais antigos da região tinham sua pequena produção própria, porém as missões mais recentes, vindas do estrangeiro, careciam de expertise. Nossa oficina na cidade de Arica era a única com um método exclusivo e secreto de transformar nos tecidos mais belos, delicados e resistentes o pelo áspero das lhamas andinas. E por que não dizer, nossos preços baixos convinham à Igreja. A oficina, por sua vez, precisava escoar o excesso de produção de suas laboriosas e frenéticas artesãs, que adoeciam gravemente se deixassem de trabalhar um dia que fosse. Era uma obra social, portanto uma acomodação perfeita para ambas as partes. Porém, a madre abadessa do Rozas parecia não alcançar o significado dessa missão evangelizadora do trabalho patrocinada pela Igreja de Roma. Em seu gabinete, ela me apontou uma cadeira e, após uma troca cordial de miserere-nobis, ofereceu-me um chá de ervas exóticas, especialidade da clausura. Não identifiquei o bouquet que exalava da porcelana de Sèvres e bebi como se fosse água quente. Suando de pé ao lado da virgem honorária, a noviça que me recebera montava guarda com um sugestivo sorriso nos lábios, olhando sonhadoramente para o ar. Era uma sarça ardente. Por derrière et devant. Ardia tanto com o amor a Deus que não suportava usar roupas, me veio na hora a frase do jesuíta sobre Madalena. Ó pirâmedes de Gizé, comecei a suar também e a madre sorvia a beberagem com os olhos cravados em mim, como se degustasse lentamente o meu sangue no cálice sagrado. O chá virou vinagre. De volta ao Gólgota, senti por um momento que a minha pequena cruz não era páreo para aquele cajado de Moisés. Apreensiva, pensei no próximo passo. O baú. O meu cartão de visitas. Quatro freiras da largura de uma porta entraram farfalhando hábitos e o depuseram no chão. Abri-o sem demora e mostrei-lhes com frivolidade tática os tecidos com que trabalhávamos. Falar de negócios é a melhor forma de evitar pensamentos constrangedores, aprendi com papá. Virando-me para a madre, disse-lhe que também os tecidos eram confeccionados por nós. “Estou ciente disso. Poupe-me dos anúncios de sua trombeta. Estou ciente da sua oficina, de sua excelência no mister e dos seus preços. Por que acha que mandei chamá-la?”, ela disse com um esgar, pousando devagar a xícara sobre a mesa. Engoli em seco e fiz cara de beata. E todos os abutres fartar-se-ão de tuas carnes, praguejei baixinho em Apocalipse. “Para fazer uma encomenda, senhora abadessa?”, respondi, assentando-me no trono da humildade. Ela ergueu-se, andou até a janela que dava vista para um pequeno cemitério e olhou para os céus, aguardando uma mensagem divina com silêncio eloquente. Ao lado da janela, pendurado na parede, divisei com espanto um quadro do cadáver do papa Inocêncio IX. Eu sabia que o papa encomendara a pintura ainda vivo para mantê-la sempre diante de si. Seria uma reprodução ou a original? E como transmigrara de Roma para aquele remoto antro de cortesãs de Cristo... ”Tempora mutantur nos et mutamur in illis”, ela interrompeu minhas divagações. Tive a sensação do chão tremendo sob meus pés. As têmporas mutam e nós mutamos com Elis. Eu não era nenhuma autoridade em latim. “O tempo muda e nós com ele”, ela traduziu, consultando o dicionário no céu. Deus me livre de mula que faz him e mulher que sabe latim, lembrei de papá outra vez. “É verdade que suas prestimosas tecelãs são descendentes dos chinchorro?” Eu fiquei estática por dez segundos. “Creio que algumas de fato o sejam, senhora abadessa.” Ela deu meia-volta e sentou-se, acariciando o crucifixo em seu peito. “São cristãs? Quero dizer, foram batizadas?” “Eu não saberia lhe informar. Não peço certidões de batismo quando me procuram para trabalhar.” A abadessa fuzilou-me com o olhar. “Sabia que os chinchorro eram canibais e mumificavam seus mortos, comendo as vísceras depois de retiradas?” Eu não sabia direito aonde a abadessa estava querendo chegar, mas farejava problemas. Ou pior, ameaças. Ela não me chamara ao convento só para fazer umas comprinhas afinal, havia um propósito oculto e sombrio que eu estava prestes a descobrir. Não sei como ficara sabendo que minhas meninas descendiam dos chinchorro. Isso poderia pôr abaixo toda a nossa relação com Roma. Seria o fim da oficina. A miséria para tantas famílias. Foi quando ela deu o golpe final. “Eu não vou tolerar que a sua oficina de chinchorras continue servindo à Igreja, minha cara. O cardeal Hurtado já está a par do problema e deve encontrar-se com o papa em breve para resolver este assunto de suma gravidade.” “Mas, senhora abadessa, não percebe as consequências do seu gesto? Isso significará a fome para centenas de famílias pobres. Peço sua misericórdia. As tecelãs não podem pagar pelos erros de seus ancestrais. Não é justo”, eu implorava, postulante de raiva. “Curioso o seu sentido de justiça. A sua oficina aparentemente inocente coloca em risco o futuro da civilização cristã. A herança está no sangue. Essas mulheres são canibais e sempre o serão. Quanto à miséria, diz o velho adágio que Fortius ille facit qui miser esse potest.” Carajo. “Eu lhe imploro, abadessa. O que devo fazer para evitar essa tragédia? Eu posso me responsabilizar por elas perante a senhora, o cardeal, o papa, Deus!” “Não seja tola, menina. Contenha-se. No entanto, pensando bem, sua blasfêmia não é de todo ruim. Se se dispuser a assinar um termo de responsabilidade, podemos entrar num acordo. A oficina fecha. Mas suas tecelãs terão que vir morar neste convento e ensinar seu prestigioso ofício às minhas noviças...” Ela continuou falando falando e uma nuvem cegou meus olhos. Não me lembro de ter assinado papel algum ou sequer de ter saído daquele ninho de víboras. Só despertei do choque na bodeguita, quando o primeiro gole de vinho bateu no meu estômago. Havia uma outra intenção, eu sei. Só podia ser. Sou capaz de senti-la agora. Palpável. Minhas meninas não iriam apenas ensinar-lhes os segredos da tecelagem. Não, não era isso. Subi na carruagem e adormeci. Não sei o que direi às meninas quando chegar em casa.

13 de agosto de 1868. Fue enormemente intenso el terremoto que asoló Arica y casi todas las ciudades chilenas próximas, incluyendo la capital, Santiago, y sus efectos llegaron hasta islas del océano Pacífico. En el océano el seísmo generó marejadas con grandes olas, que azotaran varias ciudades costeras. Arica y la isla Santa Cecilia fueron las zonas más afectadas por la tragedia. No hay noticias de supervivientes, pero una mujer encontrada borracha en una diligencia sobrevivió: “Fue tremendo. De repente vi un poco de luz y salí.”