Um incandescente sol de fim de
tarde castiga a janela da carruagem queimando meus lábios. O cocheiro açoita os
cavalos e cada solavanco azeda mais um pouco o vinho barato que tomei na
bodeguita antes de embarcar. Zonza, sem saber onde a terra se acaba e o mar
começa, vejo quatro pessoas viajando naquele inferno comigo. Podem ser duas. A
paisagem lá fora são linhas, junções, curvas e ângulos que minha mente não
consegue agrupar num sistema lógico. Sinto outra vez a terra tremer sob meus
pés. O dia não me caiu bem, concluo. A madre abadessa me disse palavras duras
que quase me fizeram vir às lágrimas, se lágrimas eu houvesse para desperdiçar.
Eu chegara quase ao amanhecer no Convento de Rozas, na ilha de Santa Cecília,
onde fui recebida por uma noviça deleitosíssima que me conduziu por frios
corredores à presença de uma mulher de rosto papiroide. Apresentou-se como a madre
abadessa, a superiora encarregada do treinamento espiritual das dezenas de
freiras e noviças que habitavam o convento-escola. Eu sabia que o convento da
ilha de Santa Cecília gozava do privilégio de ser o refúgio mais procurado
pelas almas femininas em desespero que ansiavam por uma vida monástica. Só que
nem todas as desesperadas do mundo tinham passe livre ao interior de seus
muros. A madre abadessa impunha rígidas condições de admissão e as provações
para se conseguir uma vaga cativa no claustro exigiam um despreendimento ainda
maior do mundo físico. Não era para qualquer uma. Eu ouvira falar de toda
espécie de mortificação carnal e que a madre tinha um conceito misterioso e
muito particular de votos perpétuos. No entanto, a curiosidade pelo grotesco
não estava entre os motivos que me levaram ao convento nessa manhã. Agora não
sei o que direi às meninas quando chegar em casa. Há alguns anos administro uma
oficina de costureiras chilenas hiperativas e o caráter de minhas visitas a
instituições religiosas é puramente comercial. Padres, monges e freiras
precisavam de quem lhes confeccionasse regularmente peças de vestuário, além de
artigos de catre, mesa e altar. Muitos mosteiros e conventos dos mais antigos
da região tinham sua pequena produção própria, porém as missões mais recentes,
vindas do estrangeiro, careciam de expertise. Nossa oficina na cidade de Arica
era a única com um método exclusivo e secreto de transformar nos tecidos mais
belos, delicados e resistentes o pelo áspero das lhamas andinas. E por que não
dizer, nossos preços baixos convinham à Igreja. A oficina, por sua vez,
precisava escoar o excesso de produção de suas laboriosas e frenéticas artesãs,
que adoeciam gravemente se deixassem de trabalhar um dia que fosse. Era uma
obra social, portanto uma acomodação perfeita para ambas as partes. Porém, a
madre abadessa do Rozas parecia não alcançar o significado dessa missão
evangelizadora do trabalho patrocinada pela Igreja de Roma. Em seu gabinete,
ela me apontou uma cadeira e, após uma troca cordial de miserere-nobis,
ofereceu-me um chá de ervas exóticas, especialidade da clausura. Não
identifiquei o bouquet que exalava da
porcelana de Sèvres e bebi como se fosse água quente. Suando de pé ao lado da
virgem honorária, a noviça que me recebera montava guarda com um sugestivo
sorriso nos lábios, olhando sonhadoramente para o ar. Era uma sarça ardente.
Por derrière et devant. Ardia tanto
com o amor a Deus que não suportava usar roupas, me veio na hora a frase do
jesuíta sobre Madalena. Ó pirâmedes de Gizé, comecei a suar também e a madre
sorvia a beberagem com os olhos cravados em mim, como se degustasse lentamente
o meu sangue no cálice sagrado. O chá virou vinagre. De volta ao Gólgota, senti
por um momento que a minha pequena cruz não era páreo para aquele cajado de
Moisés. Apreensiva, pensei no próximo passo. O baú. O meu cartão de visitas.
Quatro freiras da largura de uma porta entraram farfalhando hábitos e o
depuseram no chão. Abri-o sem demora e mostrei-lhes com frivolidade tática os
tecidos com que trabalhávamos. Falar de negócios é a melhor forma de evitar
pensamentos constrangedores, aprendi com papá. Virando-me para a madre,
disse-lhe que também os tecidos eram confeccionados por nós. “Estou ciente
disso. Poupe-me dos anúncios de sua trombeta. Estou ciente da sua oficina, de
sua excelência no mister e dos seus preços. Por que acha que mandei chamá-la?”,
ela disse com um esgar, pousando devagar a xícara sobre a mesa. Engoli em seco
e fiz cara de beata. E todos os abutres fartar-se-ão de tuas carnes, praguejei
baixinho em Apocalipse. “Para fazer uma encomenda, senhora abadessa?”,
respondi, assentando-me no trono da humildade. Ela ergueu-se, andou até a
janela que dava vista para um pequeno cemitério e olhou para os céus,
aguardando uma mensagem divina com silêncio eloquente. Ao lado da janela,
pendurado na parede, divisei com espanto um quadro do cadáver do papa Inocêncio
IX. Eu sabia que o papa encomendara a pintura ainda vivo para mantê-la sempre
diante de si. Seria uma reprodução ou a original? E como transmigrara de Roma
para aquele remoto antro de cortesãs de Cristo... ”Tempora mutantur nos et mutamur in illis”, ela interrompeu
minhas divagações. Tive a sensação do chão tremendo sob meus pés. As têmporas
mutam e nós mutamos com Elis. Eu não era nenhuma autoridade em latim. “O tempo
muda e nós com ele”, ela traduziu, consultando o dicionário no céu. Deus me
livre de mula que faz him e mulher que sabe latim, lembrei de papá outra vez.
“É verdade que suas prestimosas tecelãs são descendentes dos chinchorro?” Eu
fiquei estática por dez segundos. “Creio que algumas de fato o sejam, senhora
abadessa.” Ela deu meia-volta e sentou-se, acariciando o crucifixo em seu
peito. “São cristãs? Quero dizer, foram batizadas?” “Eu não saberia lhe
informar. Não peço certidões de batismo quando me procuram para trabalhar.” A
abadessa fuzilou-me com o olhar. “Sabia que os chinchorro eram canibais e
mumificavam seus mortos, comendo as vísceras depois de retiradas?” Eu não sabia
direito aonde a abadessa estava querendo chegar, mas farejava problemas. Ou
pior, ameaças. Ela não me chamara ao convento só para fazer umas comprinhas
afinal, havia um propósito oculto e sombrio que eu estava prestes a descobrir.
Não sei como ficara sabendo que minhas meninas descendiam dos chinchorro. Isso
poderia pôr abaixo toda a nossa relação com Roma. Seria o fim da oficina. A
miséria para tantas famílias. Foi quando ela deu o golpe final. “Eu não vou
tolerar que a sua oficina de chinchorras continue servindo à Igreja, minha
cara. O cardeal Hurtado já está a par do problema e deve encontrar-se com o
papa em breve para resolver este assunto de suma gravidade.” “Mas, senhora
abadessa, não percebe as consequências do seu gesto? Isso significará a fome
para centenas de famílias pobres. Peço sua misericórdia. As tecelãs não podem
pagar pelos erros de seus ancestrais. Não é justo”, eu implorava, postulante de
raiva. “Curioso o seu sentido de justiça. A sua oficina aparentemente inocente
coloca em risco o futuro da civilização cristã. A herança está no sangue. Essas
mulheres são canibais e sempre o serão. Quanto à miséria, diz o velho adágio
que Fortius ille facit qui miser esse potest.” Carajo. “Eu lhe imploro,
abadessa. O que devo fazer para evitar essa tragédia? Eu posso me
responsabilizar por elas perante a senhora, o cardeal, o papa, Deus!” “Não seja
tola, menina. Contenha-se. No entanto, pensando bem, sua blasfêmia não é de
todo ruim. Se se dispuser a assinar um termo de responsabilidade, podemos
entrar num acordo. A oficina fecha. Mas suas tecelãs terão que vir morar neste
convento e ensinar seu prestigioso ofício às minhas noviças...” Ela continuou
falando falando e uma nuvem cegou meus olhos. Não me lembro de ter assinado
papel algum ou sequer de ter saído daquele ninho de víboras. Só despertei do
choque na bodeguita, quando o primeiro gole de vinho bateu no meu estômago.
Havia uma outra intenção, eu sei. Só podia ser. Sou capaz de senti-la agora.
Palpável. Minhas meninas não iriam apenas ensinar-lhes os segredos da
tecelagem. Não, não era isso. Havia mais do que a quebra do sétimo mandamento. Subi na carruagem e adormeci. Não sei o que direi
às meninas quando chegar em casa.
13 de
agosto de 1868. Fue enormemente intenso el terremoto que asoló Arica y casi
todas las ciudades chilenas próximas, incluyendo la capital, Santiago, y sus
efectos llegaron hasta islas del océano Pacífico. En el océano el seísmo generó
marejadas con grandes olas, que azotaran varias ciudades costeras. Arica y la
isla Santa Cecilia fueron las zonas más afectadas por la tragedia. No hay
noticias de supervivientes, pero una mujer encontrada borracha en una
diligencia sobrevivió: “Fue tremendo. De repente vi un poco de luz y salí.”